Os sinos de uma sinagoga acordam uma mulher em seu apartamento, quando marcas no corpo e taças vazias indicam que algo aconteceu na noite passada. Sons sem sombras é um pequeno tratado sobre a solidão em São Paulo, e a derrocada mental que atinge os que se atém aos apagões de uma noite para não pensar nos anos anteriores. Ana Luiza Savassi, roteirista nas séries Sessão de Terapia e Instinto Feminino, mergulha no isolamento da quarentena para trazer uma história que desvela o quão frágil a realidade pode ser.
Os abruptos e estridentes sinos da sinagoga me despertam de um sono sem sonho. Meus olhos se recusam a abrir, claramente precisavam de mais algumas horas repousados, blindados, alheios ao mundo. Quando começo a me entender como gente, penso que deve ser final de semana. Os sinos só tocam aos sábados, muito raramente aos domingos, e se revezam entre manhã e tarde. Deve ser não, com certeza é. Só assim para que qualquer coisa tenha mais ansiedade em fazer barulho do que o meu despertador em dia útil. Tateio minha cama em busca do celular para comprovar o que já sei: sábado e, ao meu ver, demasiadamente cedo para qualquer tipo de manifestação, inclusive fé.
Meu corpo implora mais descanso. Até ensaio um retorno ao resgatar o travesseiro que insisto em dizer que não consigo dormir sem e que invariavelmente acorda abandonado no chão. Mesmo com os olhos fechados, os meus ouvidos sem blecautes enxergam o mundo vivo fora das minhas paredes finas. Carros passando, pássaros cantantes, barulhos de freio, incompreensíveis conversas, um avião distante sinalizam que dormir é perder tempo. A ansiedade toma conta de mim e, mesmo tomada pelo sono e a inércia, atendo ao seu chamado.
Automaticamente vou até o banheiro lavar o rosto. Nenhuma mínima luz pode encontrar minha pele que adormeceu com ácido glicólico antirrugas, anti-idade, anti-tudo-que-é-inevitável. Esse ácido, que passo todos as noites religiosamente, faz promessas milagrosas mas, até agora, só deixou meu rosto ardendo e meus lençóis sujos. Fico pensando como fazem os que são casados e mantêm essa cara e supervalorizada rotina de skincare. Dormem cheios de cremes, melecados? Dividem não só a cama, os boletos mas também os hábitos que todos preferimos fazer quando estamos sozinhos? Na minha cabeça, casamentos são como comercial de margarina exibido em um conto de fadas: totalmente livres de problemas de pele, peso, hálito, preguiça, tristeza, tédio, solidão e repentinas vontades de se ficar totalmente só. Longe de como eu me vejo toda manhã. Não entendo a razão de se casar se não for para ser assim.
Depois de lavar bem o rosto, que fica vermelho de tanto esfregar, encontro meus óculos. Sem eles vejo apenas o que está muito próximo aos meus olhos e borrões que eu tento não trombar. Agora com o mundo nítido, comprovo o que senti ao enxaguar minha pele: uma espinha incipiente e, o pior, rugas mais acentuadas. Penso logo em botox e roacutan, mas não demoro a abortar essa combinação de envelhecimento não tão precoce e adolescência já bem tardia. Prefiro então controlar o controlável. Com uma pinça, tiro um a um daqueles pelos que nasceram fora das minhas sobrancelhas arqueadas. Admiro minhas charmosas covinhas nas bochechas que dão o ar da graça quando eu sorrio ou pressiono meus lábios. Talvez sejam o que eu mais goste em mim. Dou uma olhada geral no meu rosto e chego a mais conformada conclusão que até estou bem para os meus mais ou menos 37 anos. Brigar com o inevitável é mais inútil que dormir.
Na cozinha, equipada de todos os utensílios necessários mas livre de qualquer personalidade, coloco a água para ferver e ao me aproximar da garrafa térmica, o seu espelhado torto e embaçado refletem não só sua pouca qualidade como várias manchas no meu braço. Ao recorrer ao espelho, constato que não só um, mas os dois braços estão cobertos delas. Dois ou três roxos fazem parte da normalidade de uma pele pálida como a minha, assim como as veias que saltam aos olhos. Só que não daquele jeito, nos dois lados, quase que idênticos. As bolhas de água fervendo que esqueci no fogo me roubam a atenção, e ao mesmo tempo que desligo o fogão logo encontro a justificativa mais fácil: deve ter sido na academia ou algum esbarrão que, na hora, não me dei conta. De forma prática, planejo que se fizer muito calor na semana posso tentar cobri-los com algum corretivo eficiente. Talvez só um da Guerlain seja capaz disso, daqueles que escondem até tatuagem. Uma quase amiga minha, que dividia a cama e os boletos com um homem violento, ficou expert em combinar cores de corretivos para esconder as marcas da sua relação, assim como ficou craque em arrumar malas, fugir de casa e desaparecer sem se despedir de ninguém. Nem mesmo de mim – apesar do seu marido duvidar disso até hoje – logo quando estávamos virando confidentes. O que restou dela foram suas dicas de maquiagem e um suéter que me emprestou um dia antes de sumir para sempre. Lembrar dessa história me faz esquecer os meus roxos.
Enquanto espero minhas torradas saltarem, planejo mentalmente um sábado tranquilo, bem mais frustrante do que a minha idade e o meu estado civil esperam de mim. Da cozinha, consigo enxergar a luz do sol que invade a sala pela porta de vidro da varanda. Aqueles quase nenhum metros quadrados que foram determinantes para eu fechar meu contrato de aluguel. Um cantinho onde só cabem uma mesinha, duas pequenas cadeiras e alguns vasos de plantas é o meu lugar favorito no mundo. Perco-me por horas naquele pequeno refúgio exposto ao sol, ouvindo as músicas da minha vizinha, lendo meus livros, trabalhando e, principalmente, sem fazer nada, apenas observando as pessoas que passam pela rua e que moram no meu raio de visão. Puro voyeurismo, mas sem a parte erótica. Nunca achei muita graça em ver outras pessoas fazendo sexo. Para mim é a mesma coisa de ver alguém comendo uma refeição saborosa ou mergulhando em um mar paradisíaco, só dá vontade. Como toda manhã, é lá que sempre faço meu desjejum e hoje não seria diferente.
Ainda na cozinha, viro uma xícara de café puro em poucos goles. Detesto seu gosto, inclusive seu cheiro, mas só depois de cafeinamente abastecida consigo pensar, digamos, com lucidez. Meu sono é um pouco mais resistente que o normal. Não vejo tantas pessoas sufocando um bocejo, coçando os olhos ou lutando contra a vontade de voltar ao subconsciente quanto eu. Subconsciente que mais parece o breu de uma gruta sem eco, já que eu nunca sonho. Queimo minha língua com a ansiedade de acabar logo com aquele mal necessário, e como uma criança diante de um remédio ruim, coloco duas bolachas recheadas na boca para disfarçar seu gosto. Depois da obrigação, o deleite: meio mamão, duas torradas, uma generosa fatia de queijo canastra, geleia e suco de laranja. Segurando minha bandeja, atravesso a porta de vidro da varanda e dou de cara com os resquícios de uma cena de um filme que eu não vi. Na minha mesinha, as sobras de uma noite anterior animada: duas taças sujas acompanhadas de três garrafas vazias do meu vinho favorito, e dois pratos com sobras de parma, brie e azeitonas. Olho para trás buscando algum sentido, como se o resto do apartamento pudesse me explicar o que minha memória não fazia ideia. Aperto meus olhos como se eu fosse acordar de um sonho inédito, bem moderno, 3D, onde sentimos cheiros e queimamos a língua. Abandono minha bandeja na mesa de centro da sala e me sento atônita no sofá. Esfregar meu rosto com a esperança de que as peças do meu quebra cabeça mental se encaixem, é totalmente em vão.
Vou até o banheiro lavar novamente o rosto na esperança de voltar a fita, o tempo, reiniciar um dia que mal começou. Antes de abrir a torneira, percebo que o box está embaçado e com a toalha de visitas estendida. Não percebi nada daquilo quando acordei, mas agora prestando atenção, ainda dava para sentir o cheiro de um banho recém tomado. Tanto a toalha quanto o tapete encostado na saída do box estão completamente úmidos. Alguém tinha tomado banho ali e não fazia muito tempo. A única certeza que tenho, pelo resquício do meu ácido glicólico que tive que fazer esforço para tirar, é que não tinha sido eu.
Depois de alguns minutos paralisada, encontro refúgio em uma das cadeiras da varanda e remonto a noite anterior:
Depois de um imprevisto no trabalho, consegui sair de lá mais ou menos às 22 horas. Como era o dia do meu rodízio, pedi um carro por aplicativo e fui direto para casa. Faminta, fiz um mexidão com tudo que tinha na geladeira, inclusive uns ingredientes com validade duvidosa que preferi não conferir, esperando que com a ignorância eles não me fizessem mal. Depois de um preguiçoso banho, passei meu ácido milagroso em movimentos circulares ascendentes. Liguei imediatamente um ventiladorzinho de mão para aliviar a absurda ardência que ele causa em minha pele excessivamente sensível. No meu notebook fiz minhas rotineiras, rápidas e, como sempre, inférteis pesquisas. Achei um documentário na TV para relaxar, um desses muitos sobre crimes não resolvidos e pessoas desaparecidas. Enquanto passavam os créditos iniciais, liguei o repelente eletrônico na tomada para driblar os fastidiosos, e insistentemente presentes, pernilongos. Configurei a função sleep da TV. Ajustei em um volume ameno para que as trilhas bem mais altas que os diálogos não me despertem. Abracei meu indispensável travesseiro e tentei assistir ao documentário sem encostar em sua fronha e nos lençóis de linho que ainda estou pagando em, nem tão, suaves prestações. E, depois disso, só os sons da sinagoga.
Minha reconstituição teve trilha sonora oferecida por minha vizinha, Adélia. Uma precoce viúva de uns 50 anos que mora sozinha e que, diferente dos sinos, ainda não identifiquei nenhum padrão para suas rotinas de ensaio. Ela já se apresentou em pomposos concertos por todo mundo, e quando não está em turnê, o Theatro Municipal de São Paulo é sua segunda casa. Adélia prefere roupas largas e elegantes, assessórios pequenos, e usa sempre um coque bem feito; é perfeccionista com seu penteado assim como é com sua afinação. Não, eu nunca a vi, muito menos me falaram sobre ela. Tudo que sei é baseado em sua voz, repertório e enorme talento. Quando canta é sempre uma ópera, bem bonita, às vezes bem dramática, às vezes melancólica, sempre emocionante. Fico pensando como deve ser quando acompanhada por uma grande orquestra. Esporadicamente, Adélia prefere tocar só uma melodia em seu piano, e quando reconheço a música, sua letra, que ela escolhe não cantar, parece decifrar a minha alma. Hoje, Adélia escolheu uma ópera que quase era possível tocar sua tristeza. Em alguns momentos sua respiração se perdia por um soluço, quase um choro, toda uma angústia que ela transforma em beleza e que generosamente divide com alguns quarteirões do bairro de Santa Cecília. Esta Santa, que tão pouco se sabe, teria cantado a Deus ao morrer, daí o título de padroeira dos músicos e da música sacra. Sinto que Adélia canta com um desalento seguido de redenção que se assemelham a isso. O canto, os suspiros, os sons e ao final um segundo de silêncio que é possível ouvir e que, seu pudesse apostar, é o que antecede a morte.
Embalada pela música, incorporo a cientista forense em busca de alguma pista, qualquer mínimo rastro, que explique o que aconteceu naquela noite. Examino nas taças se há marcas de batom ou cheiro de cigarro. Vasculho o lixo atrás de um bilhete, de um recibo, de um preservativo… Nenhum perfume nem nas fronhas, nem no lençol. O chão está impecavelmente limpo. Procuro até no ralo cabelos que não sejam meus. E, principalmente, crio coragem e me investigo. Sexo realmente tem cheiro, mas a única coisa que sinto é o meu próprio. Pego meu celular, nada de mensagens, nada de chamadas feitas ou recebidas. Olho o aplicativo e minha última corrida foi mesmo do trabalho para a casa. Entro nos meus contatos, e enquanto desço a barra de rolagem na esperança de encontrar um número salvo com o nome a pessoa que eu não me lembro e passou a noite aqui, sou interrompida por uma mensagem:
Já acordei, se quiser pode vir buscar o Zeca. =D
Socorro, o Zeca! Este mistério, claro eufemismo para completo nonsense, me fez esquecer dele, ou seja, de tudo. Confesso que não é a primeira vez que ele tem que passar a noite na casa da monitora da creche pois não consegui busca-lo a tempo. A escolinha funciona até às 19h. Quem, em São Paulo, consegue chegar em qualquer lugar em uma sexta-feira, a esse horário? Talvez os que tenham helicóptero… Creches facilitam a nossa vida, mas também tencionam nosso pescoço com seus rigorosos horários de entrada, sem dizer o de saída. Quase 10 da noite, ao avisar Rita que eu já estava a caminho, recebi o sucinto comunicado de que Zeca tinha brincado o dia todo e, assim como ela, já estava na cama. Uma forma educada de dizer que ir buscá-lo àquela hora só iria incomodá-la ainda mais. Zeca adora Rita, e a adoração é recíproca. Assim, quando cometo essas falhas, penso se tratar de uma festa do pijama, uma noite na casa de amigos. Rita também tem filhos. Ele deve estar adorando. E minha culpa me faz acreditar cegamente em cada palavra.
Prendo meu cabelo de qualquer jeito, passo filtro solar, concluo que meus poros faciais devem desconhecer o que é viver sem serem sufocados por alguma fórmula, e saio correndo. Rita mora a alguns quarteirões de casa. Aquela distância que cansa andando, mas que envergonha ir de carro à luz do dia.
Passo apressadamente pela sinagoga que fica na esquina, mas que naquela manhã parecia habitar a sala ao lado. Por um segundo, a encaro e a ofendo mentalmente. Penso que se tivesse tocado seus sinos um pouco mais cedo, talvez daria tempo de flagrar a incógnita que invadiu minha casa e roubou minha paz. Minha calça de pijama estampada com personagens infantis, minha blusa de alcinha e meus chinelos, contrastam com os ternos e vestidos dos meus vizinhos judeus que acabam de deixar alguma cerimônia sabendo muito bem o que fizeram na noite passada. Aperto o passo, corro os gigantescos quarteirões da Albuquerque Lins enquanto o sol é impiedoso. Enfim, ofegantemente suada, preciso recuperar meu folego diante do prédio de Rita que, por já estar na portaria, revela sua ansiedade em ter um sábado sem responsabilidades além das suas.
Ao me ver, Zeca faz a festa. Nada de tristeza. Nada de decepção. Nada de cobranças. Nada de mágoa. Nada de humano. Seus olhinhos brilhantes e seu rabão de vira lata para lá e para cá, são só amor e alegria. Rita e seus três cachorros se despedem dele que agora só tem olhos pra mim. Ao ser lambida e perdoada por Zeca, me lembro de quando nos conhecemos…
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Estava retornando de um bate e volta a Belo Horizonte onde participei de um seminário. Meu avião acompanhado de mais três demoram a pousar por falta de pista livre em Congonhas. Em São Paulo é assim, congestionamento até no céu. Ficamos sobrevoando o aeroporto e enquanto as pessoas ficavam cada vez mais nervosas, eu permanecia na minha provável irritante tranquilidade. Eu gosto de avião, mas não exatamente por estar presa em uma caixa de ferro a quilômetros do chão e agora com o risco de o combustível acabar. Gosto porque, diferente da minha varanda, meu voyeurismo ganha uma límpida trilha sonora. Me fascina observar os compromissos, as implicâncias em família, as inverossímeis juras dos apaixonados, trabalhadores hiperprodutivos, executivos hipertensos, os dedos inspirados dos escritores, as curiosas reações dos leitores, turma de amigos cheia de expectativas ou ostentando suas aventuras, o dinamismo dos comissários, os constrangedores roncos altamente incontroláveis e o papo de desconhecidos que o destino uniu por uma mesma fileira e que, apesar de trocarem promessas e contatos, muito dificilmente voltará a juntá-los. Experiência própria…
No meio da minha prazerosa bisbilhotagem do cotidiano alheio, é autorizado, finalmente, o nosso pouso. Sexta- feira, final de tarde, garoa – que, convenhamos, hoje em dia tem mais fama do que ocorrência – e um aeroporto lotado eram um retrato do caos. De dentro do avião, pessoas sentindo-se injuriadas gravam dramáticas mensagens de voz relatando a tragédia que acabaram de passar. Mesmo ainda estando inteiramente vivas. Nada é mais patético do que um chilique, mas só percebemos isso quando não é o nosso. Minha pose de pessoa evoluída desaparece assim que constato que não encostamos em nenhum finger. O fato de ter que esperar no meio da pista o ônibus para nos levar até o aeroporto faz com que eu me torne mais um daqueles que se juntam para recarregar a pilha do mau humor e das queixas infrutíferas.
Depois de tanto, transgredindo a regra de só poder pedir carro de aplicativo em determinado local, fui para entrada principal de Congonhas esperando aproveitar o de alguém que acabara de chegar. Minha exaustão engoliu meu senso de coletividade, qualquer minuto a menos para estar em casa valia todo tipo de corrupção.
O transito chegava a ser sufocante pela sua aparente infinitude. No meio de toda aquela balbúrdia, reparei em uma família: um casal e seus dois filhos que, mesmo ainda crianças, eram marrentos como adultos. E logo atrás o que realmente chamou minha atenção: um enorme e lindo cachorro.
A mulher e seus filhos entraram apressados no saguão de embarque, enquanto o pai pegou uma bolinha e a lançou para o cachorro ir buscar. Parecia que enquanto estávamos em um mix de Sodama e Gomorra, ele gozava um universo paralelo no meio do Ibirapuera. Ignorando o caos, aquele vira lata lindo, dourado e cheio de energia não demorou muito para alcançar o seu brinquedo, mas não foi tão rápido a tempo de ver a sua própria família virar-lhe as costas. O homem, após o lançamento, correu para dentro do aeroporto como um fugitivo. Incrédula, voltei meus olhos para o cachorro, que com sua bolinha na boca tentava encontrar o seu dono.
Sua expressão de alegria logo se transformou enquanto desviava das pessoas que ignoravam sua presença. Os faróis dos carros iluminavam sua aflição, seus olhos dançavam desesperados atrás daqueles sobre os quais eu nada sabia, mas já odiava. Como cão sem dono, há alguns minutos literalmente, seguindo o rastro que só seu focinho enxergava, invadiu o aeroporto. Precisou de alguns funcionários para ser alcançado e, naquele momento eu entendi porque pessoas comuns não podem ter porte de armas. Apesar das buzinas, da chuva, do da alta falação, seu choro uivado sobrepunha todo o resto.
O motorista do aplicativo teve que buzinar para ganhar minha atenção e, quando teve sucesso, tive uma estranha sensação ao constatar que estava a poucos passos de abandonar aquele inferno. Os saltos e o formato dos meus sapatos já molhados torturavam minhas pernas e meus dedos, fazendo com que um banco acolchoado valesse mais que milhões. Abri a porta do carro enquanto razão e emoção duelavam dentro de mim no tempo de um alongado suspiro. Com coração ansioso, me desculpei com aquele simpático condutor, abandonei o carro e me guiei até aquele choro agudo.
E, se ainda me sobravam dúvidas a respeito da minha decisão, elas evaporaram assim que Zeca – vi seu nome gravado na coleira – correu em minha direção como se me conhecesse desde sempre. O carinho era tanto que as pessoas acharam realmente que eu era sua dona. Parecia mesmo que Zeca me reconhecia. Hoje eu já acho que ele se reconheceu em mim. Nós nos reconhecemos um no outro.
Assim, Zeca entrou na minha vida e nunca mais foi fácil pegar qualquer meio de transporte, especialmente para sair da cidade. Naquele dia, após vários cancelamentos de corrida ao verem seu tamanho e seu pelo molhado, um senhor mal humorado com a vida, mas de bem com os caninos, aceitou Zeca em seu carro. Com amargura, foi do engarrafado trajeto do aeroporto de Congonhas até Santa Cecília, repetindo que quanto mais ele conhecia os homens – principalmente as mulheres – mais ele amava os animais. Ficou claro para mim que ali dentro existia não apenas um, mas dois corações partidos, porém com certeza só um deles eu levaria para casa.
Mesmo desprovidos de caráter e coração, me desprendo do meu ódio e orgulho para admitir que a antiga família de Zeca brilhou na função de educa-lo. Tirando um xixi em cada canto da casa assim que chegou, para deixar claro quem mandava ali agora, Zeca sempre se comportou como um lorde bon vivant. Um pouco carente na primeira noite, fez com que a promessa dele jamais dormir na minha cama fosse quebrada ali mesmo. E, ali mesmo, descobri que ele não era muito fã da única condição estipulada: banho. Na manhã seguinte, fiquei feliz com a conclusão do veterinário de que ele ainda era novinho, tendo mais ou menos 3 anos de idade. E esse é mais ou menos o tempo que já estamos juntos.
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Enquanto peço desculpas à Rita, não consigo ignorar seu sorriso inexplicavelmente maldoso.
– Muito obrigada mesmo, Rita. Na hora que eu estava saindo tive que substituir uma professora que já me salvou mil vezes. Não tive como negar – disse, enquanto sigo agachada brincando com Zeca e os outros cachorros.
– Deixa de bobagem, Vick . Você sabe que eu adoro o Zeca. – me dando uma olhada geral – A noite foi boa, hein?
– Como? – respondo gelada e me levanto dura.
– Me conta tudo sobre ele! – revelando-se uma Rita animada, uma versão que eu nunca tinha visto. Seus sorrisos ela só distribui em mensagens de texto.
– Você me viu com alguém? – receosa da resposta.
Rita assente sorrindo, sigo tentando repostas mais verbais.
– Como que ele era? Quer dizer, você achou ele bonito? Alto?
Rita aponta para os meus braços. Na correria, saí descoberta deixando toda a minha aflição à mostra.
– Vi nada, só estou vendo as digitais que ele deixou.
– Ah, para de bobagem, isso foi academia… – tento disfarçar.
– Que mãozona ele tem. Nossa… – Rita me ignora e se lamenta – Não me lembro a última vez que senti o peso de um homem em cima de mim.
Pelo visto eu também não. Sem muita paciência para meu comportamento blasé e – para ela – sonso, Rita aproxima-se de mim reproduzindo com as próprias mãos que aqueles roxos têm exatamente o formato de alguém me pegando com força pelos braços. As marcas redondas se encaixam em seus dedos ao me apertarem, apesar de mais distantes e mais grossos que os dela.
Zeca pula e nos separa. Por mais que goste de Rita, minha posição vulnerável aciona o seu instinto protetor. Até faria sentido “esquecê-lo” para fazer o que Rita imagina que eu fiz. Quando faço sexo, preciso controlar os sons do meu prazer para que Zeca não arrombe a porta, preventivamente trancada, e ataque qualquer pessoa que esteja em cima, embaixo ou embaralhado em mim. Neste momento, decido não destruir as fantasias de Rita e, sem confirmar literalmente, imito seu sorrio malicioso como se tivesse sido pega e confessa. Melhor ter vivido uma noite tórrida de amor do que assumir meu suspeito e controverso apagão. Até porque eu não sei mesmo o que aconteceu. E sexo está longe de ser uma das piores hipóteses.
Assim, tomamos o caminho de casa. Quando me dou conta, estamos na porta do nosso prédio e nem me lembro de ter andado até lá. Acho, na verdade tenho certeza, de que foi ele que me conduziu até em casa e não o contrário. Eu só conseguia pensar taças, banho, pratos, dedos, marcas, marcas de dedos.
Ao colocar meu dedo no portão de biometria, lamento a tecnologia de portaria remota, onde os porteiros foram substituídos por atendentes em uma central, tipo call center, que nem Deus sabe onde é. Modernidades que furtam nossos direitos de termos um porteiro presencial para vigiar nossas vidas, fofocar sobre elas, nos deixar sem graça ao acordá-los de madrugada e para me dizer quem saiu da minha casa hoje de manhã! Olhei para as câmeras de segurança e tive a óbvia ideia de pedir para ter acesso às suas imagens. Só que o que iria alegar? Não sei o que fiz ontem à noite? Mentir que fui furtada? Bem nerd, eu já tinha lido o manual do condomínio de cabo a rabo e sabia bem que para assistir às gravações, precisava apresentar um boletim de ocorrência. Toda uma burocracia para preservar a intimidade dos moradores e, aparentemente, da pessoa que entrou na minha casa, me deu um boa noite cinderela, foi embora sem deixar nenhum bilhete, mas não sem antes se lavar ao invés de lavar as minhas louças.
Zeca gosta de sair, mas como todos nós, adora voltar para casa. Observo seu comportamento esperando que o seu faro identifique algo que o meu olfato humano deixou escapar. Sempre que conheço alguém ou que acaricio outro cachorro por meio segundo, quando nos encontramos Zeca reage desconfiado e agitado. Ele não tinha estranhado nada até então, mas estávamos na rua envoltos a inúmeras distrações para seu focinho. Em casa poderia ser diferente… Que nada! Zeca nunca esteve tão normal. E assim, inspirada por policiais com seus farejadores de drogas, conduzo meu santo cachorro por todos os cantos da casa. O único sinal que Zeca faz é de tédio.
Tentando encerrar este assunto de vez, jogo fora as garrafas de vinho, lavo as taças e pratos, seco, os devolvo para o armário e coloco a toalha de hóspedes, e até o tapete, na máquina de lavar. Parecendo uma criminosa, elimino os rastros como se isso eliminasse o que tivesse acontecido.
No banho, reparo os detalhes das marcas que eu não tenho como apagar. O espelho que cobre inteiramente a parede oposta ao chuveiro, não deixa de expor nenhum centímetro do meu corpo. Algumas marcas já têm tempo que me cobrem. As novas me fazem sentir arrepios e, ao pressioná-las, dor. Não consigo parar de pensar em quem poderia estar refletido ali hoje de manhã. Olho os vidro do box com cuidado, procurando algum desenho ou sinal. Hesito por alguns segundos mas acabo escorregando minha mão e me toco, no anseio de que possa acordar alguma lembrança. Enquanto passeio em mim, fecho os olhos tentando voltar no tempo que eu perdi e achar qualquer pegada mental, mas a única coisa que eu encontro é um inesperado prazer e uma dor de cabeça que fica cada vez mais latente.
Depois de um almoço sem graça e sem sentir o gosto do um quarto da comida que eu não desperdicei, me deito no sofá. Zeca vem correndo me fazer companhia, roubando mais da metade do espaço. Um dos sons que mais me alegra e acalma é o barulhinho de suas patas no meu chão de taco. Não deixo de pensar que se Zeca estivesse comigo, talvez meu dia seguiria conforme planejado: sem nenhuma – nova – angústia. Ao abandoná-lo com Rita, eu que fiquei só. Ao pensar nisso, fico mais atormentada: será que sabiam que eu estava sozinha? Será que além de observar, eu também sou observada? Minha exaustão mental e natureza fazem com que eu não demore a pegar no sono. Depois de dois minutos ou duas horas, o interfone interrompe minha fuga. Parece mesmo que o dia me quer acordada. Desesperado de alegria, os latidos de Zeca sufocam as palavras do porteiro remoto – que pode estar na China -, e com muito esforço de ambos os lados, entendo que tem uma entrega para mim. Compras online são um dos meus esportes favoritos…
Quando chego na portaria, vejo um entregador com um imenso buquê de flores. Fico sem saber como agir, até que ele elimina minhas poucas opções:
– Victória?
– S… So.. Sou eu. – pego o buquê no automático, enquanto Zeca não para de fazer festa para o rapaz que brinca com ele de volta.
Uma vizinha animada, que entra no prédio ao mesmo tempo, vibra com o meu presente e sua empolgação nos acompanha até o meu andar. Ao entrar em casa, fico na dúvida se agradeci ou não o entregador. Se dei boa tarde para a vizinha. Desprezo quem não faz o mínimo. Só que hoje outra preocupação suplantou as boas maneiras.
Ao ajeitar o buquê acompanhado por vários espirros, vejo um pequeno cartão mergulhado no meio de tantas flores do campo.
Adorei nossa noite.
Sem assinatura, sem caligrafia, essas três palavras datilografadas em máquina de escrever não me dizem nada, exceto que não dava mais para fingir que tive um surto de sonambulismo com esquizofrenia e bebi 3 garrafas de vinhos em duas taças diferentes para não me sentir tão só. Era real. Alguém esteve mesmo aqui em casa. E aparentemente adorou. Não parecia mais um bandido que me drogou e fez tudo que podia, inclusive adivinhar minhas flores favoritas. E ao que pouco indica, sabe ser intenso na sombra da noite e gentil à luz do sol. O que eu não me lembro foi tudo, menos ordinário. Nesses nossos tempos, prova de amor é telefonar ao invés de mandar mensagem. Enviar um buquê de flores me escapa a definição. Algo que, eu acho, nunca vi fora das centenas de filmes e livros – os antigos – que cobrem minhas paredes.
Meu corpo se arrepia enquanto minha nuca queima ao mesmo tempo que chego a sentir mini fincadas na cabeça. Zeca me encara como se enxergasse meu medo, um dos muitos sentimentos e invulgares sensações que tomam conta de mim. Só que os meus pensamentos se resumem a apenas um, como um mantra dentro da minha mente:
Não é possível. Não é possível que isto está acontecendo… de novo.
Minha vizinha volta a cantar….