O frio de julho: Capítulo 1 – 23h15min

Um jovem casal que pretende escrever um TCC sobre “A visibilidade das pessoas solitárias na cidade de São Paulo” é abordado por um jornalista desempregado num ônibus noturno. É o ponto de partida para O frio de julho, de Rodrigo Romani, que nos leva pela madrugada dos bares fechando junto aos três, ao descobrirem que procuram pela mesma mulher. Quanto mais a noite se estende, mais claro fica que a desaparecida corre sérios riscos. O autor, que vive o subterrâneo cultural paulistano desde 2004, busca “convencer os leitores de que não existe futuro para quem não possui um presente, para quem, na verdade, nem existe, só faz sombra”.

– Eu não me lembro da última vez vi ela

– Pois é… eu também não!

– E, além da gente, duvido que alguém tenha notado o sumiço dela!

– Certeza que não… nem o Seu Marchand.

– Que Seu Marchand?!

– O dono do boteco da rua de baixo da minha casa; Dona Gisela não sai de lá.

– Como você conhece o dono do boteco da rua de baixo da sua casa, Carol?

– Eu assisto os jogos lá, ué.

– O loco, nunca me falou que vê jogo de futebol em boteco!

Ôxi, por que tá falando desse jeito, com esse tom pejorativo?

– Sei lá, é estranho, só isso.

– Estranho uma mulher vendo jogo em boteco, Sr. Deodato?

Deodato, namorado de Carol há algumas semanas, fica mudo por alguns segundos, mas acaba mantendo sua posição.

– É… é estranho sim. Sei lá, boteco não é lugar pra gente que nem você.

Carolina fica indignada com Deodato e na tentativa de manter a compostura, vira-se para trás tentando ignorá-lo. Ao se virar ela percebe um homem de meia idade inclinado no banco atrás deles, praticamente dentro de sua conversa com Deodato. De costas para o casal, o homem de meia idade parece não notar a desconfiança dela, então Carolina aproveita-se da situação para cutucar o namorado e o alerta, sussurrando em seu ouvido.

– Esse cara aí atrás ouvindo nossa conversa.

Ela sinaliza em direção ao homem de meia idade com a cabeça e quando Deodato se vira para olhar, o tal cara já não está mais sentado naquele lugar.

– Não tem ninguém sentado atrás da gente, Carol.

Carolina vira-se abruptamente, por reflexo, para verificar se o que Deodato a dissera era realmente verdade e então sente uma dor violenta, como se algo quente houvesse penetrado seu pescoço, suas veias, invadindo sua cabeça. Uma dor forte o suficiente para fazer qualquer pessoa gritar, mas ela emite apenas um leve e tímido gemido.

– O que foi, Carol?

Aiii… meu pescoço queimandooo!

– Como assim, Carol?

– Espera. – Ela sussurra.

– Tudo bem aí, moça?

De pé, ao lado do banco onde o casal está sentado, alguém tenta descobrir o que houve com Carolina. Deodato, aflito, sinaliza com as mãos e a cabeça mostrando que não está entendendo, depois responde dizendo que não faz ideia. Já se recuperando, mas ainda com as mãos no pescoço, Carolina diz que está bem enquanto, de cabeça baixa, tenta alongar o pescoço virando o rosto de um lado para o outro lentamente, inclinando a cabeça para um lado e para o outro, depois encostando o queixo no peito enquanto puxa a cabeça suavemente para frente com uma das mãos.

– Tá tudo bem, isso acontece às vezes quando eu movimento a cabeça de forma brusca. Meu pescoço queima, é isso.

– Certeza?

Carolina olha para ele e finalmente percebe que conversa com o homem que, há poucos minutos, ela havia notado sentado no banco de trás com um comportamento estranho. Com cuidado, ela movimenta com a cabeça para ratificar a resposta que já havia dado naquele mesmo instante.  

– Bora, Carol… chegamo na estação.

– Eu também desço aqui. Posso acompanhar vocês. – O homem alerta.

O casal se olha e Carolina, tentando esconder seu nervosismo pelo envolvimento daquele homem, rejeita a proposta.

– Não precisa, eu bem, isso sempre acontece.

Então, ao olhar para o ferro onde se apoiaria, Carolina sente nova pontada e desta vez o grito de dor vence a batalha e, livre, ressoa no ar por todo o vagão resfriado pelo forte ar-condicionado. Ao redor, as poucas pessoas presentes olham uma para as outras, depois para as três personagens em cena e passam a observam a situação. 

– Carol!

O metrô chega à estação e o homem oferece ajuda novamente, desta vez diretamente a Deodato, para que ele consiga levantá-la do banco e juntos saírem dali. Ele aceita e os dois se posicionam, Carolina entre os dois, oferecendo apoio a ela que, confusa, segura-se em ambos e se levanta sem muito esforço. Então caminham juntos para fora do vagão no momento em que soa o aviso sonoro, fazendo com os três sintam seus corações acelerarem.

Já caminhando pela plataforma, o dedicado homem que outrora fora flagrado em um comportamento estranho e automaticamente passado a ser observado com suspeição por Carolina, decide acompanhá-los por toda a estação, como quem está ali única e exclusivamente para dar segurança à garota. Deodato percebe sua intenção e acata, contrariando Carolina que aperta seu braço como sinal de insatisfação. 

É noite de 3 de julho. É inverno desde o dia 21 do mês anterior, mas faz calor; um calor irritante, úmido que abafa toda a área que se estende desde da região de embarque e desembarque dos passageiros até poucos metros antes de o trio se aproximar das escadas, por onde uma corrente de ar um pouco menos quente se movimenta de forma tímida, mas com intensidade suficiente para tornar a jornada de volta para casa um pouco mais agradável. 

Despretensiosamente, o homem de meia idade pergunta a Deodato:

– Vocês moram longe?

– Jd. Santa Flor, perto da Vereador Mascarenhas, tranquilo.

– Sei, conheço ali. Tenho amigos do colegial que moravam por aqueles lados. Vocês vão pegar o ônibus ali na rua da igrejinha, né?

– Sim. 

Agora em silêncio, eles caminham lentamente até chegar ao ponto de ônibus onde, pesados, o casal se senta suspirando com um alívio de quem gostaria que o dia tivesse terminado naquele exato momento. 

Após alguns segundos calados, Deodato pergunta ao homem de meia idade que os acompanhou até ali e permanece com eles, agora velando-os.

– Você faz o que?

– Desculpe, nem me apresentei a vocês. Meu nome é Douglas, sou jornalista. – Ele responde enquanto observa Carolina sentada de cabeça baixa, massageando o próprio pescoço e estende a mão a Deodato.

– Legal… prazer.

– E vocês? Devem ser estudantes, certo? Você é a Carol, não é isso?

– Sou. – Ela responde, mantendo a cabeça baixa.

– E eu sou Deodato, a gente fazendo faculdade de Serviço Social. 

– Muito bom.

Douglas se mostra amigável com o casal lhes oferecendo chiclete, enquanto retira do bolso um da caixinha de metal para si.

– Eu quero sim, começando a me dá fome.

Deodato estica o braço para pegar um chiclete e Carolina assiste à cena novamente contrariada. Douglas aponta a caixinha de metal para ela, mas ela não aceita. Então a recolhe e a coloca de volta onde estava.

trabalha onde? – Deodato pergunta.

– Na verdade estou desempregado.

– Sério? É foda…

– É, mas tive hoje uma reunião com um jornalista aí, renomado até. Talvez eu consiga algo. Vamos ver.

– Que bom!

– Sim.

Os três ficam em silêncio e a noite parece começar a se refrescar. Deodato apoia a cabeça de Carolina no ombro e Douglas permanece assistindo à cena em pé, de frente para o casal. 

Após alguns minutos, Carolina rompe o silêncio:

– Em qual área trabalha?

Douglas pensa por uma fração de segundo antes de responder.

– Investigativa, criminal.

– Olha! Que da hora, eu também gosto desse tipo de jornalismo. – Deodato se empolga.

– Que bom. Eu tenho fascínio mesmo por histórias urbanas, inclusive por lendas.

Carolina, desconfiada, olha para Deodato, enfia a mão na bolsinha que carrega pendurada em seu ombro esquerdo. Com movimentos ligeiros, ela tira de lá uma nota de dez reais e a estende a Douglas.

– Será que pode pegar uma água com gás pra mim ali com o tio do isopor marrom? Minha garganta secou. 

Ela aponta com a cabeça em direção ao ambulante e Deodato se espanta com sua atitude inesperada, se prontificando a fazer o serviço ele mesmo.

– Deixa que eu…

– Não… fica aqui comigo, com medo de a dor voltar. – Carolina o interrompe. 

– Tranquilo, fica aí com ela que eu pego.

Douglas apanha a nota e começa a traçar seu caminho em direção ao ambulante. Dá alguns poucos passos e se vira novamente para o casal, surpreendendo Carolina que ansiosamente tenta prender a atenção do namorado.

– Água com gás, certo?

– Isso… por favor. Se quiser pegar uma pra você, pode pegar. Quer também, Deodato?

– Não, valeu.

Douglas retoma o caminho até o ambulante sem olhar para trás. Sentada, Carolina puxa suavemente a cabeça de Deodato para que seu ouvido chegue mais perto da boca dela.

– Eu achando muito estranha essa coincidência, Deodato.

– Que coincidência, Carol?

– Eu tenho certeza que esse cara tava ouvindo a gente falar sobre o sumiço da Dona Gisela. Aí, de repente, o cara vem e fala que é jornalista investigativo e que gosta de histórias urbanas?

– Deve ser por isso que ele se interessou pela nossa conversa, Carol.

Carolina para de respirar por instantes, aparentemente confusa.

– E outra, a gente não tava falando baixo, então ele deve ter ouvido. Como um bom jornalista, manteve o foco na história, na esperança de ser algo com o que ele poderia trabalhar. Ainda mais porque ele desempregado.

Carolina respira fundo, como quem relaxa ou se livra de um pensamento ruim, suspira ruidosamente e retoma a conversa em um tom mais suave.

– Então a gente podia falar sobre a Dona Gisela com ele e…

– É o que eu tava pensando agora mesmo, Carol. – Deodato a interrompe.

– É… mas será que ele vai se interessar? Como jornalista, pode ser que ele, pelo menos, nos ajude orientando e direcionando a gente na investigação. Sei lá, ainda com um pé atrás com ele. 

– Claro que ele vai ele querer ajudar! Carol, fica tranquila, eu aqui com você.

Deodato massageia o pescoço da namorada e beija-lhe a cabeça, ela novamente se encosta em seu ombro.

aqui sua água e o troco.

O casal se assusta, deixando Douglas constrangido e confuso.

– Desculpe, não quis assustar vocês. 

– Tudo bem. – Carolina responde, tentando se familiarizar com a ideia de dar confiança ao estranho jornalista.

– Você melhor?

melhor, obrigada pela a ajuda.

– Disponha.

Douglas permanece em silêncio por alguns segundos, olhando a tela de seu celular e então decide ir embora.

– Bom… já que você bem, vou deixar vocês em paz e tomar meu rumo.

Carolina estende o braço e toca a mão de Douglas, que fica paralisado olhando para ela.

– Espera, você mora onde?

– Aqui mesmo, numa vilinha que tem a duas quadras do metrô, do lado de lá da avenida.

– Legal, posso eu te fazer uma pergunta?

– Claro, fique à vontade.

Carolina solta a mão de Douglas; o clima entre os dois se tornara mais suave após a conversa que ela havia acabado de ter com Deodato.

– Você disse que é jornalista e que trabalha com investigação criminal e histórias urbanas, certo?

– Basicamente.

– Legal! – Deodato se empolga novamente.

– Inclusive na reunião que tive hoje, propus fazer uma investigação sobre alguns desaparecimentos que ocorreram nas últimas semanas. São casos bem peculiares, envolvendo pessoas que moram sozinhas, totalmente solitárias. Elas simplesmente deixaram de ser vista pelos seus vizinhos e eu sei de três casos já: dois no centro, perto do Vale do Anhangabaú, e um no Bairro do Sabino.

O casal se olha espantado e então Deodato abre o jogo com Douglas.

– Cara, seguinte, é exatamente disso que a gente quer falar.

– Vocês conhecem alguma dessas pessoas? – O jornalista e espanta.

– Não, a gente conhece alguém que pode ser uma quarta vítima. – Carolina responde. 

Douglas, aparentemente surpreso com a informação, permanece em silêncio dando condições para que o casal prossiga com o relato. Carolina continua.

– O nome dela é Gisela, ela vive sozinha em uma casa antiga, bem pequena, na minha rua. Faz alguns dias que não vejo ela, mas como ninguém costuma perceber que ela existe, não deve nem ter queixa disso na polícia.

– E como você percebeu isso? Você tem certeza que ela sumiu? Ela pode ter viajado ou até mesmo estar morta em casa, não se sabe.

– Que horror, cara! – Deodato o reprime.

– Não… ela não morta. Pelo menos não dentro de casa. – Carolina afirma.

– E como você tem tanta certeza de que ela não está lá?

– Eu fui lá checar, a porta tava aberta e…

– Você invadiu a casa da mulher? – Douglas pergunta com admiração.

– Mais ou menos… é que o Deodato e eu estamos fazendo um TCC sobre a visibilidade de pessoas solitárias dentro da…

– Então vocês notaram o sumiço dela… entendi. Devem ter sido os únicos mesmo. Mas ainda assim, como você garante que ela não está viajando?

– O guarda-roupa dela cheio, encontrei umas malas guardadas. Eu revirei tudo ali, parece que ela saiu e simplesmente não voltou mais.

Douglas segue acompanhando o relato de Carolina.

– Outra coisa… ela tem um papagaio e jamais viajaria sem pedir pra alguém cuidar dele!

– Exato! – Deodato concorda.

– Entendi.

– E pelo que você acabou de dizer sobre o sumiço de outras três pessoas, ela pode ser mais uma vítima! Sei lá, de repente tem um assassino em série solto por aí!

Carolina termina o relato com excitação e Douglas deixa escapar um leve sorriso antes de tentar tranquilizar o casal.

– Eu acho difícil, ela mora muito longe dos lugares de onde as outras três pessoas sumiram. Além disso, até agora são apenas pessoas desaparecidas, ninguém sabe se foram assassinadas.

O ônibus pelo qual o casal espera chega, então Douglas se despede.

– Não… vem com a gente! Quero mostrar onde ela mora e o material que temos sobre ela, tenho certeza que você vai se interessar!

Carolina implora, já totalmente desapegada da desconfiança que tinha pelo homem de meia idade que se comportava de forma estranha cerca de trinta minutos atrás. Douglas permanece parado de frente para o casal.

– A não ser que você precise realmente ir embora agora, claro.

–  Não, não preciso, mas acho melhor eu dar meu contato pra vocês e marc…

– Não, cara… tranquilo. – Deodato o interrompe.

– É, vem com a gente… eu não vou conseguir dormir hoje se não aproveitar essa coincidência pra tentar fazer alguma coisa pela Dona Gisela. Tenho certeza de que ela precisando de ajuda, eu sinto isso!

Pensativo, Douglas encara o casal enquanto o motorista do ônibus manobra o veículo numa tentativa frustrada de estacionar o mais próximo possível da calçada; a metade de trás do coletivo estava praticamente sobre a calçada enquanto que a porta de entrada estava afastada da sarjeta em cerca de um metro. Um vento gelado agora toma conta da rua, trazendo a certeza de que o tempo finalmente está virando. 

Carolina abraça Deodato, sentindo seu corpo se arrepiar e lamenta

– Nossa, Deodato, agora vai ficar frio de vez. Pior que eu sem blusa.

– Vem, vamo entrar logo então.

Douglas permanece parado olhando para o casal em silêncio. Então Carolina lhe dá um ultimato.

– Você vem ou não?

A última estação: Sem assunto 1

 A última estação, a história de uma menina que se vê num trem para Paranapiacaba, lança uma instigante pergunta: o que acontece com as pessoas que perderam a sanidade antes de morrer?

Vencedora do prêmio de melhor atriz do Festival de Cinema de Recife, a também terapeuta Marisol Ribeiro nos convida a acompanhá-la nessa viagem possível pela repetição que nos assombra, em vida e na morte.

Não existem pessoas na catedral.

Dormir em um monumento histórico é de uma malandragem que eu costumava chamar de coragem, mas agora vejo, que não existe nenhuma coragem nesse ato.

Estou com medo, me escondo atrás de um santo velho, acho que Santa Isabel, não sei identificar, espero o guarda vestido de militar passar a corrente envolvendo a porta gigante de madeira pesada e, com o brilho do isqueiro, faço luz para te escrever.

Confiro o ticket que tiro ileso do meu bolso “Panapiacaba” cadeira 5 as 6:11 da manhã.

Cadeira 5 me parece perto do maquinista, assim prefiro acreditar na esperança de sobrevivência caso um desajuste de trilhos ocorra, foi assim que você me disse um dia, é assim que vou fazer.

A sua habilidade de escolher lugares aleatórios para um encontro é imensa.

Abro a bolsa para tirar um lenço largo, preto, de lã falsa que comprei no caminho da estação e de dentro dele cai uma chave, a chave de casa que pelo visto esqueci de deixar para Sabrina. Droga de mente atormentada a minha, droga de desorganização com as pequenas coisas, droga.

Respiro fundo ao lembrar que, talvez,  ela tenha uma cópia.

Isso me deixa um pouco mais tranqüila e então acendo um cigarro amassado que veio junto com o lenço. Desfaço minha culpa nas tragadas e penso em você…mas não no seu rosto, esse rosto eu não sei pensar. Penso nas suas mãos, partes importantes que te fazem ser quem é.

Consigo sentir meu pescoço pulsar, ele treme forte como se toda a minha circulação estivesse correndo uma maratona olímpica. Procuro o remédio na carteira e conto os que me restam, são 18 os comprimidos ainda fechados, 18 dias e nada mais. Confesso que cogito deixa-los, encurtar a possível abstinência seria inteligente ao seu ver, não seria? Me arrependo de ter feito essa pergunta a você, oq irá discorrer sobre isso me chateia, eu já sei.

Um barulho de explosão pequena toma o salão imenso desse lugar aqui, me encolho e, atenta, imagino se não existem mais pessoas como eu dormindo atrás de imagens.

Novamente um barulho, agora mais alto. O que vem depois é um silêncio bruto. Percebo que os barulhos são das explosões internas causadas nas madeiras devido ao aquecimento interno.

Olho no relógio, 2:55 AM. Pego o lenço e o estiro no chão, você não sabe, mas eu consigo acordar se assim programar a minha mente. Você não sabe mas eu fiz tudo isso de uma maneira quase programada. Deito por cima das minhas mãos, mas logo as estiro para baixo do meu tronco, o cheiro de sangue ainda está, e ele me enjoa um pouco, desde pequena sou assim. Respiro 3 vezes e tento bloquear da minha mente aquela violência toda. Fugir sempre esteve nos meus panos, quando eu era criança queria ir embora de todos os lugares que morava, só para criar um movimento original meu mas dessa vez, meu desejo é voltar atrás, eu queria…Penso na cidade e no trem que vai sair. Acho que durmo em menos de um minuto, mas mesmo assim continuo a falar, sem som, daquela forma fazíamos antes de eu me perder de mim.

Antologia 1: Búfalo

 Um dos maiores escritores da era dos blogs de ficção, Moacir Novaes marca seu retorno com Búfalo, uma coletânea de contos que evocam o candomblé e a cultura periférica.

Histórias fantásticas e assustadoras, apagadas e silenciadas estão escondidas em nosso cotidiano. Elas existem, invisíveis, em meio ao ruído constante da cidade de São Paulo.

Na história que dá nome à coletânea, numa noite de raios e trovões em São Paulo, você poderia sentir a eletricidade no ar… assim como o gosto ferroso de sangue. Em O médico preto, em meio ao caos de uma pandemia, um médico demonstra que para a vida prosseguir deve haver morte. A foto é a história de um fotógrafo que usa suas lentes para captar os últimos instantes de terror de suas vítimas. Em O caminho, o autor se vale da ficção para propor uma questão. E se as escolhas, o livre arbítrio e as decisões que tomamos forem apenas uma ilusão? O vigia nos revela que a pessoa nasce para o que ela é, e como certos hábitos são duros de abandonar…Mesmo depois da morte. E na última história, O machado e a tartaruga, uma exposição de arte africana demonstra como a religião do outro é sempre um “mito”.

Búfalo

Ela parecia tão sóbria… Talvez fosse apenas uma impressão superficial.

Parada em um dos cantos do salão, não estava sorrindo ou dançando.

As pulsações da música infiltravam-se em cada mínima fração daquele espaço.

Menos nela.

Nunca nela.

Era como se houvesse ali um vácuo. Ela parecia tão sóbria.

Não tinha os olhos confusos ou desesperados.

Não estava ansiosa para esquecer algo.

Ao contrário, parecia saber que quem busca vingança nunca pode esquecer.

Jamais deve perdoar ou fechar suas feridas.

Olhe e fique atento, tente ver, e vai notar que é como estar diante de um buraco negro.

Silencioso.

Impassível.

Ela estava parada, feito um fato inevitável.

Vestida de vermelho.

Cabelos de um tom ainda mais escuro que as roupas. Curtos. Uma figura esguia.

O inexplicável, em sua imagem, tornava-a imediatamente uma mulher bonita para qualquer olhar. Preste atenção no que digo, ela não era apenas bonita. Era uma mulher.

E existe uma força monstruosa nesse aspecto de sua personalidade.

Não uma moça inexperiente ou uma menina que precise de elogios.

Ela era uma mulher e isso fazia toda a diferença.

Sabia ser desejada, instantaneamente, como o demônio sabe ser rejeitado.

Estava entre dois espelhos, por isso você conseguiria ver a tatuagem em suas costas nuas, uma cabeça de um búfalo negro de longos chifres e olhos vazios.

Os traços do desenho eram absolutamente brutais, como cicatrizes, e ainda assim, lindos.

Ela mal percebia a música, dentro da sua cabeça havia espaço somente para as batidas dos tambores, enlouquecedoras, eternas. Elas eram o seu rosnado, ecoando em cada gesto e pensamento.

Moldando a vontade dela de gritar e destruir tudo ao ser redor.

Obrigando aquela mulher a conter-se. Negar-se.

Durante a última hora três homens e duas mulheres tentaram abordá-la e, em cada uma das tentativas, ocorria o mesmo processo, ela não sorria, olhava diretamente para a outra pessoa, como se desmontasse sua alma. O ato durava alguns segundos.

Depois parecia perder o interesse e simplesmente balançava a cabeça.

Negando-se.

Na sexta vez, um homem de cabelos claros se aproximou dela.

Ela o olhou, passando as camadas da alma até chegar ao centro.

Detestava homens violentos.

Odiava ainda mais quando percebia que um deles desculpava-se por todos os erros que tinha cometido em sua imprestável vida.

Os tambores estavam tão altos na cabeça dela.

Misturavam-se com a voz daquele polaco sorrindo e com a voz dos mortos. As batidas exigiam retribuição. Não apenas dor, mas punição.

“Meu nome é Iansã”

Essa foi a primeira vez que ela sorriu, em seguida, puxou o rapaz pela mão para beijá-lo. A boca dela tinha um gosto de canela ardida. Ela segurou um dos pulsos dele.

Ele a seguiu, sem questionar.

Juntos subiram pelas escadas de incêndio até o topo do prédio que hospedava o clube.

O céu estava escuro.

 Nuvens pesadas combinadas com as luzes da cidade. Você não veria os raios, mas, sentiria o cheiro da chuva e os trovões.

“Vamos fazer aqui?”

“Sim. Vamos sim querido.”

Ela se aproximou e segurou seu corpo. Depois o beijou e foi movendo as mãos até estar trançada a ele.

O prazer inicial rapidamente desapareceu quando o rapaz sentiu os ossos do seu braço e pulsos sendo pressionados até o ponto de trincarem sob a carne.

Não havia como afastar a boca do beijo dela, os lábios pareciam uma mistura de ferro e sangue seco. Não havia como gritar.

O gemido sufocado e repleto de dor súbita era incrivelmente doce para o paladar dela.

Os olhos escancarados, o medo por estar indefeso.

Tudo era doce e justo.

Sem aviso um raio atingiu o corpo daquela moça, transpassando-a, serpenteando entre os dois amantes. O trovão veio logo depois, como resultado do ar superaquecido, mas o som era pequeno, ao menos, se comparado com os tambores.

A corrente elétrica ainda estalava no ar quando o homem caiu fulminado no chão.

A mulher olhou para o corpo dele, para as queimaduras e ferimentos.

Ele ainda respirava.

Devagar e aflito.

Ela abaixou-se e colocou uma das mãos sobre o peito dele.

Encarava-o, esperando o coração parar de bater, inconscientemente, comparava aquelas batidas aos tambores na sua cabeça.

Queria guardar o momento.

Tum…. Tum… Tum… …. Tum… … … … e depois o nada.

Os tambores ainda estavam lá, dentro da cabeça dela, entre seus pensamos.

Já o coração dele não estava mais.

Ela se levantou, refez o caminho para dentro do prédio.

Os trovões faziam o ar em toda cidade vibrar, vidros tremiam e concreto reverberava com os estrondos.

Ainda assim, eram sons pequenos.

Ao menos se comparados aos tambores.

Paraíso: Capítulo 1

Em Paraíso, Paula Febbe traz à tona um romance desgastado. Que pode ser pelo tempo ou pela morte. Por uma pandemia ou pelo que continuaria igual. Pela verdade ou por um pesadelo. 

A autora de Relato inspirado por orelhas, Mãos secas com apenas duas folhas, Metástase, As vantagens que encontrei na morte de meu pai, Não, e O sarau inconsciente de um alter ego esquizofrênico, já teve três de seus livros entre os mais vendidos na Amazon.

A mariposa morta está parada dentro do abajur que tem uma entrada por não sei onde. Eu deveria tirar ela lá de dentro para que o corpo morto dela não queimasse mais cada vez que eu acendo a luz, mas não consigo. Talvez eu queira deixá-la presa no abajur. Talvez eu esteja sentindo certa familiaridade. Meu corpo queima cada vez que acendo a minha luz, também.

Caminho pelo apartamento que sempre foi vazio, mas parece mais vazio do que sempre foi.

A presença que um dia foi trazida por ele, não pareceu sustentar o que eu poderia querer.

Achei que as coisas poderiam estar diferentes.

As coisas estavam diferentes.

Porém, tenho certeza de que se eu perguntasse para ele, ele diria que não percebeu. Ou que toda minha percepção havia sido um mal-entendido. 

Estranho.

Minha percepção só parecia entender as coisas erroneamente quando diziam respeito a ele.

Talvez as desculpas que eu dizia a mim mesma estivessem me desfazendo.

Era claro o que havia mudado.

Claro como água.

Mas eu não queria ver, não é?

Queria que tivesse sido diferente, não é?

Por isso as tantas mesmas perguntas repetidas de mim para mim mesma, tantas e tantas vezes, como esperança das respostas mudarem.

A casa das romãs: Capítulo 1 – Homo proponit, sed Deus disponit

A São Paulo da década de trinta era um lugar formidável para os espíritos que estivessem em busca de diversões e entretenimento. Thássio Rodriguez Capranera, autor de O robe amarelo e Ditirambos na Cantábria antiga, nos leva para um tour nesta cidade velha, decadente, chuvosa e secreta. Em A casa das romãs, dois amigos, ébrios e entediados, descobrem nos encantos dos lugares iluminados horrores muito além dos sugeridos na própria escuridão.

Estávamos eu e meu amigo Josefo, sentados à mesa de um café na Rua Direita, quando um estranho nos abordou pedindo por fósforos. Camilo, impaciente, afugentou-o com um gesto rude e um rosnado; o pobre sujeito, andrajoso, a pele tomada por chagas abertas e vermelhas, úmidas, afastou-se, um cachimbo indecentemente escurecido na boca; com o olhar tristonho, aquele prometheus das mazelas foi buscar seu fogo do conhecimento em uma outra mesa.

— Esses infelizes, não cansam de nos pedir coisas? — Josefo era um bruto, mas não uma alma ruim, isto deve ser dito.

— Ora, é apenas um pedinte, eles são assim… Não seja tão grosseiro.

Josefo levou a xícara de café à boca, e em um sinal de repulsa ao gosto da bebida, torceu as feições e devolveu a xícara ao seu pires. Uma borboleta amarela pousou sobre a mesa, próximo de minha bebida. Distraído, eu a encarei com aquele assombro que nos toma de assalto quando diante de uma distinta aparição, enquanto Josefo, irritado, balbuciava e rosnava como um macaco japonês alguma imprecação contra o sabor da bebida que lhe fora servida.

Não que não gostasse de café, mas Josefo — e entendam de uma vez por todas — é um desses estetas que encontram defeitos em qualquer coisa na qual possam aplicar seus conhecimentos. Naturalmente, os sabores lhe vinham à boca sempre com uma carga insuportável de palestras, as quais proferia, com algum fervor, sempre que algum pobre  — naquela ocasião, eu mesmo — se fazia presente para ouvi-lo. 

— Ácido demais. Não torraram bem o café, deve estar ainda verde. Que desgraça para um grão tão rico, é um puro marroquino! 

Espantei a borboleta das asas amarelas sulcadas por rajadas pretas e voltei meu olhar para Josefo. Este me encarava com uma torção de ondas violentas estampada no rosto, como se fosse culpa minha a má qualidade de seu café. Pouco me importando com suas reivindicações mequetrefes, apanhei meu lenço de bolso e, enxugando as gotas de suor em minha testa cada vez maior, disse-lhe:

— Vamos pagar a conta e seguir para a livraria, sim? Talvez lá encontres algo melhor que café ácido mal torrado.

Josefo amoleceu num instante sua máscara exótica de guerra e desfez-se em um sorriso de canto de boca, cinza de cigarro.

— A acidez da literatura me é mais detestável que a do café. Não suporto seu gosto, Torquato, é pior que as leituras dos tempos do Largo. Montesquieu tornou-se meu pior inimigo, e aqueles textos ingleses… céus!

— Não se preocupe, — Disse a ele, erguendo-me da cadeira — a livraria que iremos visitar, além de não ficar muito longe deste café, pode ser tomada como uma daquelas formidáveis cabanas tuaregues onde sempre um insigne patrono de caravana lhe recebe com hospitalidade. Não é como um lugar desses aqui, onde torram mal seu café. — E rindo lhe dei um tapa nas costas; estávamos já à beira do balcão — O dono é um desses velhacos que mais se parecem com um Jedidiah do que com um Dickens. Seu gosto por leitura é apócrifo, nada de chatices vetustas e volutações parabólico-sintáticas. 

Josefo me olhou com frieza, e isto significava que havia aceito meu convite; era seu modo de dissimular a confiança absoluta que tinha em minhas aventuras. Como havia dito, não era um mau homem, talvez estúpido o suficiente para crer-se inteligente demais, ou requintado demais… tinha ares de dândi, mas da bíblia dos malditos conhecia somente o salmo 23. Era como um desses cristãos de porcelana, homens de barro frio que prestam homenagem ao santo sem olhar-lhe o rosto esculpido, não sabem o que estão fazendo, e pedem ninharias, exigem mesquinhezas com saibo de farinha de trigo no vapor, e crêem que a massa insossa de grãos moídas lhes irá nutrir o espírito como se fosse rara vianda. 

Caso tempo tivesse de percorrer com minha tinteiro essas páginas de papel barato que comprei em um velho armazém na Penha, talvez expusesse de Josefo as cadeladas sarabandinas em que se metera por conta desse néscio traço de caráter, mas permito-me reservar alguns desses casos para outra oportunidade.

Por hora, basta saber que pagamos a magra conta e seguimos, de braços dados e em silêncio, para o Nephelibatorivm. 

* * *

Quando a esquina da Rua Álvares Penteado dobramos, para acessar a Rua do Tesouro, ao longe avistei fechada a tímida porta da pequena livraria, onde podia-se ler, com alguma dificuldade, pintado à tinta de branco chumbo sobre uma placa de ipê inchada de umidade o nome Nephelibatorivm. Apontei com o dedo para que meu amigo pudesse ao menos de longe ver o estabelecimento, já que não fazia sentido gastarmos sola até lá sendo que estava fechado. Com algum desdém, Josefo respondeu-me o gesto:

— Com um nome desses, talvez tenha falido. — E deu meia volta, desvencilhando-se de meu braço.

Saibam também que Josefo detesta o Latim e toda sua numerosa prole. Meu colega era um germanista, da cepa que teria num camafeu o retrato de Wagner ao lado de Hoffmann, mas nunca um francês ou um espanhol. Nisto graça eu achava e muita, pois tinha em conta que talvez fosse meu colega o único advogado que havia fugido da total demência latinista da qual sofrem todos os homens das leis, com suas colunas acaneladas e suas estantes repletas de livros encadernados em couro tingido de vermelho turco, e cujos frontispícios tentam, com insucesso cômico, imitar os frontispícios do século dezoito. 

Nunca compreendi essa admiração descomedida pela estética dos filhos do Lácio, mas a julgar pelo número enfastiante de leituras do gênero que tem um estudante de direito sobre as espáduas, bem… talvez esteja aí a resposta para a antipatia de meu amigo para com Cícero e os Graco. 

Percebendo que não havia jeito para convencer Josefo a acompanhar-me para qualquer outra batida que fosse, decidi convidá-lo para uma bebida em meu apartamento, na Riachuelo, onde havia me instalado temporariamente para renovar os ares e, quem sabe, terminar a obra em que estivera trabalhando há algum tempo. 

Josefo aceitou, isto enquanto caminhávamos rumo à sua casa, no final da Rodrigo Silva, próximo de meu lugar, mas havia uma condição para que ele ficasse por mais algumas horas em minha companhia: teria que lhe preparar umas doses da bebida que tanto amava, uma mistura hedionda de Romanée Conti, cravo e licor de anis. 

Outro gosto que nunca compreendi, e que talvez fosse de sua altura de dândi poseur uma falha marca registrada que, mesmo crendo ele tratar-se de um brasão de requinte, não passava, — e isso é fato, pois provei dessa diarréia de cólera, — de uma descabida tentativa de notoriedade. 

É preciso que diga que os bares, isto é, quando tinham de fato Romanée Conti em suas adegas, recusavam-se educadamente a poluir o vinho expendioso com licor barato e aromáticos fortes. 

Pobre Josefo, o dândi mais estúpido de toda São Paulo!

* * *

Já em minha casa, grudamos junto ao bar:

E como vai seu trabalho? Avanças em algo? Da última vez que conversamos sobre, estavas empacado como mula na serrania ainda no segundo ato…

A pergunta de Josefo referia-se à obra em que, à época, eu trabalhava exaustivamente, por vezes sem chegar a lugar algum. Trata-se de uma tragédia em cinco atos, e quem a 14 de outubro de 1922 saiu para divertir-se por algumas horas no Teatro São Pedro, sabe que estou falando de “O martírio de São Cipriano”.

— Não vai nada bem, isto é fato… estou mesmo empacado na cena quarta do segundo ato há semanas! — Isto tudo eu dizia enquanto ao bar preparava a hedionda bebida para meu amigo — Estou num impasse, destes grotescos, entende? Gostaria de acrescentar à arquitetura da obra certas colunas filosóficas, em parelha, é claro, com os rompantes de paganismo e diabolismo que tanto me agradam, e as poucas cenas cômicas que sucintamente se desenrolam em uma ou outra cena… Mas creio que recheei demais a peça com espíritos salamandrinos e aparições oraculares… Sabes, não sou amante da filosofia, e me debruçar sobre qualquer tomo de Empédocles ou Anaximandro, logo agora… ah! me custaria um diabo de tempo, e os santos, andam todos surdos! Creio que mudaram-se todos para o Rio.

Meu amigo franziu o cenho, desviou seu olhar para a bebida que eu preparava e, após lamber os beiços, disse a meia-voz:

— Sei do que precisas, mas tu não aceitarias o convite meu. 

— E como tens tanta certeza disso? — perguntei-lhe, um tanto indignado.

— É que estás sempre metido com estes homens cabeçudos dos livros, esses espíritos mofados e enfadonhos que morreram há centúrias… preferes a velhice caduca que a juventude vigorosa… és um Diógenes. Digo, não tens luxo, nem prazeres… ora, e vais dizer que estou mentindo? Até os charutos que fumas tem cheiro insosso! 

Pronta a bebida, entreguei-lhe o copo e encarei-o com alguma curiosidade em meus olhos. Josefo bebeu do copo com a voracidade de um minerador sedento. Ele depositou o copo em cima do balcão, estalou a língua, e olhou-me de soslaio. Esperei em silêncio por uma manifestação que não veio, então senti-me na obrigação de provocá-lo.

— E já que tens toda a desenvoltura de alguém que sabe como de fato divertir-se, o que acha que eu deveria fazer? Beber como um desgarrado como tu?

Josefo apertou os olhos, lambeu novamente os beiços e soltou uma risada breve, quase afogada. 

— Te levo para um lugar, e se aceitares… bem… prometo-te que terás, pelo menos, algum descanso desses escritores teus que tanto perturbam a tua mente. E quem sabe não consegues encontrar caminho para tua peça? 

Josefo não era homem convincente. Eu conhecia seus costumes e suas torpes incursões aos seus mundos de sombra nos mistérios da São Paulo. Talvez fosse o tédio, ou talvez a vontade agrilhoante de vê-lo tentar seduzir-me com seus encantos pútridos de louco charlatão; mas aceitei seu convite, e em alguns poucos minutos, estávamos os dois dentro de um auto, bebendo licor em um cantil de prata e rumando para a Marechal Deodoro. 

☙⚜❧

Sons sem sombras: Capítulo 1 – Sinais

Os sinos de uma sinagoga acordam uma mulher em seu apartamento, quando marcas no corpo e taças vazias indicam que algo aconteceu na noite passada. Sons sem sombras é um pequeno tratado sobre a solidão em São Paulo, e a derrocada mental que atinge os que se atém aos apagões de uma noite para não pensar nos anos anteriores. Ana Luiza Savassi, roteirista nas séries Sessão de Terapia e Instinto Feminino, mergulha no isolamento da quarentena para trazer uma história que desvela o quão frágil a realidade pode ser.

Os abruptos e estridentes sinos da sinagoga me despertam de um sono sem sonho. Meus olhos se recusam a abrir, claramente precisavam de mais algumas horas repousados, blindados, alheios ao mundo. Quando começo a me entender como gente, penso que deve ser final de semana. Os sinos só tocam aos sábados, muito raramente aos domingos, e se revezam entre manhã e tarde. Deve ser não, com certeza é. Só assim para que qualquer coisa tenha mais ansiedade em fazer barulho do que o meu despertador em dia útil. Tateio minha cama em busca do celular para comprovar o que já sei: sábado e, ao meu ver, demasiadamente cedo para qualquer tipo de manifestação, inclusive fé. 

Meu corpo implora mais descanso. Até ensaio um retorno ao resgatar o travesseiro que insisto em dizer que não consigo dormir sem e que invariavelmente acorda abandonado no chão. Mesmo com os olhos fechados, os meus ouvidos sem blecautes enxergam o mundo vivo fora das minhas paredes finas. Carros passando, pássaros cantantes, barulhos de freio, incompreensíveis conversas, um avião distante sinalizam que dormir é perder tempo. A ansiedade toma conta de mim e, mesmo tomada pelo sono e a inércia, atendo ao seu chamado.

Automaticamente vou até o banheiro lavar o rosto. Nenhuma mínima luz pode encontrar minha pele que adormeceu com ácido glicólico antirrugas, anti-idade, anti-tudo-que-é-inevitável. Esse ácido, que passo todos as noites religiosamente, faz promessas milagrosas mas, até agora, só deixou meu rosto ardendo e meus lençóis sujos. Fico pensando como fazem os que são casados e mantêm essa cara e supervalorizada rotina de skincare. Dormem cheios de cremes, melecados? Dividem não só a cama, os boletos mas também os hábitos que todos preferimos fazer quando estamos sozinhos? Na minha cabeça, casamentos são como comercial de margarina exibido em um conto de fadas: totalmente livres de problemas de pele, peso, hálito, preguiça, tristeza, tédio, solidão e repentinas vontades de se ficar totalmente só. Longe de como eu me vejo toda manhã. Não entendo a razão de se casar se não for para ser assim. 

Depois de lavar bem o rosto, que fica vermelho de tanto esfregar, encontro meus óculos. Sem eles vejo apenas o que está muito próximo aos meus olhos e borrões que eu tento não trombar. Agora com o mundo nítido, comprovo o que senti ao enxaguar minha pele: uma espinha incipiente e, o pior, rugas mais acentuadas. Penso logo em botox e roacutan, mas não demoro a abortar essa combinação de envelhecimento não tão precoce e adolescência já bem tardia. Prefiro então controlar o controlável. Com uma pinça, tiro um a um daqueles pelos que nasceram fora das minhas sobrancelhas arqueadas. Admiro minhas charmosas covinhas nas bochechas que dão o ar da graça quando eu sorrio ou pressiono meus lábios. Talvez sejam o que eu mais goste em mim. Dou uma olhada geral no meu rosto e chego a mais conformada conclusão que até estou bem para os meus mais ou menos 37 anos. Brigar com o inevitável é mais inútil que dormir. 

Na cozinha, equipada de todos os utensílios necessários mas livre de qualquer personalidade, coloco a água para ferver e ao me aproximar da garrafa térmica, o seu espelhado torto e embaçado refletem não só sua pouca qualidade como várias manchas no meu braço. Ao recorrer ao espelho, constato que não só um, mas os dois braços estão cobertos delas. Dois ou três roxos fazem parte da normalidade de uma pele pálida como a minha, assim como as veias que saltam aos olhos. Só que não daquele jeito, nos dois lados, quase que idênticos. As bolhas de água fervendo que esqueci no fogo me roubam a atenção, e ao mesmo tempo que desligo o fogão logo encontro a justificativa mais fácil: deve ter sido na academia ou algum esbarrão que, na hora, não me dei conta. De forma prática, planejo que se fizer muito calor na semana posso tentar cobri-los com algum corretivo eficiente. Talvez só um da Guerlain seja capaz disso, daqueles que escondem até tatuagem. Uma quase amiga minha, que dividia a cama e os boletos com um homem violento, ficou expert em combinar cores de corretivos para esconder as marcas da sua relação, assim como ficou craque em arrumar malas, fugir de casa e desaparecer sem se despedir de ninguém. Nem mesmo de mim – apesar do seu marido duvidar disso até hoje – logo quando estávamos virando confidentes. O que restou dela foram suas dicas de maquiagem e um suéter que me emprestou um dia antes de sumir para sempre.  Lembrar dessa história me faz esquecer os meus roxos. 

Enquanto espero minhas torradas saltarem, planejo mentalmente um sábado tranquilo, bem mais frustrante do que a minha idade e o meu estado civil esperam de mim.  Da cozinha, consigo enxergar a luz do sol que invade a sala pela porta de vidro da varanda. Aqueles quase nenhum metros quadrados que foram determinantes para eu fechar meu contrato de aluguel. Um cantinho onde só cabem uma mesinha, duas pequenas cadeiras e alguns vasos de plantas é o meu lugar favorito no mundo. Perco-me por horas naquele pequeno refúgio exposto ao sol, ouvindo as músicas da minha vizinha, lendo meus livros, trabalhando e, principalmente, sem fazer nada, apenas observando as pessoas que passam pela rua e que moram no meu raio de visão. Puro voyeurismo, mas sem a parte erótica. Nunca achei muita graça em ver outras pessoas fazendo sexo. Para mim é a mesma coisa de ver alguém comendo uma refeição saborosa ou mergulhando em um mar paradisíaco, só dá vontade. Como toda manhã, é lá que sempre faço meu desjejum e hoje não seria diferente.

Ainda na cozinha, viro uma xícara de café puro em poucos goles. Detesto seu gosto, inclusive seu cheiro, mas só depois de cafeinamente abastecida consigo pensar, digamos, com lucidez. Meu sono é um pouco mais resistente que o normal. Não vejo tantas pessoas sufocando um bocejo, coçando os olhos ou lutando contra a vontade de voltar ao subconsciente quanto eu. Subconsciente que mais parece o breu de uma gruta sem eco, já que eu nunca sonho. Queimo minha língua com a ansiedade de acabar logo com aquele mal necessário, e como uma criança diante de um remédio ruim, coloco duas bolachas recheadas na boca para disfarçar seu gosto. Depois da obrigação, o deleite: meio mamão, duas torradas, uma generosa fatia de queijo canastra, geleia e suco de laranja. Segurando minha bandeja, atravesso a porta de vidro da varanda e dou de cara com os resquícios de uma cena de um filme que eu não vi. Na minha mesinha, as sobras de uma noite anterior animada: duas taças sujas acompanhadas de três garrafas vazias do meu vinho favorito, e dois pratos com sobras de parma, brie e azeitonas. Olho para trás buscando algum sentido, como se o resto do apartamento pudesse me explicar o que minha memória não fazia ideia. Aperto meus olhos como se eu fosse acordar de um sonho inédito, bem moderno, 3D, onde sentimos cheiros e queimamos a língua. Abandono minha bandeja na mesa de centro da sala e me sento atônita no sofá. Esfregar meu rosto com a esperança de que as peças do meu quebra cabeça mental se encaixem, é totalmente em vão.

Vou até o banheiro lavar novamente o rosto na esperança de voltar a fita, o tempo, reiniciar um dia que mal começou. Antes de abrir a torneira, percebo que o box está embaçado e com a toalha de visitas estendida. Não percebi nada daquilo quando acordei, mas agora prestando atenção, ainda dava para sentir o cheiro de um banho recém tomado. Tanto a toalha quanto o tapete encostado na saída do box estão completamente úmidos. Alguém tinha tomado banho ali e não fazia muito tempo. A única certeza que tenho, pelo resquício do meu ácido glicólico que tive que fazer esforço para tirar, é que não tinha sido eu. 

Depois de alguns minutos paralisada, encontro refúgio em uma das cadeiras da varanda e remonto a noite anterior: 

Depois de um imprevisto no trabalho, consegui sair de lá mais ou menos às 22 horas. Como era o dia do meu rodízio, pedi um carro por aplicativo e fui direto para casa. Faminta, fiz um mexidão com tudo que tinha na geladeira, inclusive uns ingredientes com validade duvidosa que preferi não conferir, esperando que com a ignorância eles não me fizessem mal. Depois de um preguiçoso banho, passei meu ácido milagroso em movimentos circulares ascendentes. Liguei imediatamente um ventiladorzinho de mão para aliviar a absurda ardência que ele causa em minha pele excessivamente sensível. No meu notebook fiz minhas rotineiras, rápidas e, como sempre, inférteis pesquisas. Achei um documentário na TV para relaxar, um desses muitos sobre crimes não resolvidos e pessoas desaparecidas. Enquanto passavam os créditos iniciais, liguei o repelente eletrônico na tomada para driblar os fastidiosos, e insistentemente presentes, pernilongos. Configurei a função sleep da TV. Ajustei em um volume ameno para que as trilhas bem mais altas que os diálogos não me despertem. Abracei meu indispensável travesseiro e tentei assistir ao documentário sem encostar em sua fronha e nos lençóis de linho que ainda estou pagando em, nem tão, suaves prestações. E, depois disso, só os sons da sinagoga.

Minha reconstituição teve trilha sonora oferecida por minha vizinha, Adélia. Uma precoce viúva de uns 50 anos que mora sozinha e que, diferente dos sinos, ainda não identifiquei nenhum padrão para suas rotinas de ensaio. Ela já se apresentou em pomposos concertos por todo mundo, e quando não está em turnê, o Theatro Municipal de São Paulo é sua segunda casa. Adélia prefere roupas largas e elegantes, assessórios pequenos, e usa sempre um coque bem feito; é perfeccionista com seu penteado assim como é com sua afinação. Não, eu nunca a vi, muito menos me falaram sobre ela. Tudo que sei é baseado em sua voz, repertório e enorme talento. Quando canta é sempre uma ópera, bem bonita, às vezes bem dramática, às vezes melancólica, sempre emocionante. Fico pensando como deve ser quando acompanhada por uma grande orquestra. Esporadicamente, Adélia prefere tocar só uma melodia em seu piano, e quando reconheço a música, sua letra, que ela escolhe não cantar, parece decifrar a minha alma. Hoje, Adélia escolheu uma ópera que quase era possível tocar sua tristeza. Em alguns momentos sua respiração se perdia por um soluço, quase um choro, toda uma angústia que ela transforma em beleza e que generosamente divide com alguns quarteirões do bairro de Santa Cecília. Esta Santa, que tão pouco se sabe, teria cantado a Deus ao morrer, daí o título de padroeira dos músicos e da música sacra. Sinto que Adélia canta com um desalento seguido de redenção que se assemelham a isso. O canto, os suspiros, os sons e ao final um segundo de silêncio que é possível ouvir e que, seu pudesse apostar, é o que antecede a morte. 

Embalada pela música, incorporo a cientista forense em busca de alguma pista, qualquer mínimo rastro, que explique o que aconteceu naquela noite. Examino nas taças se há marcas de batom ou cheiro de cigarro. Vasculho o lixo atrás de um bilhete, de um recibo, de um preservativo… Nenhum perfume nem nas fronhas, nem no lençol. O chão está impecavelmente limpo. Procuro até no ralo cabelos que não sejam meus. E, principalmente, crio coragem e me investigo. Sexo realmente tem cheiro, mas a única coisa que sinto é o meu próprio. Pego meu celular, nada de mensagens, nada de chamadas feitas ou recebidas. Olho o aplicativo e minha última corrida foi mesmo do trabalho para a casa.  Entro nos meus contatos, e enquanto desço a barra de rolagem na esperança de encontrar um número salvo com o nome a pessoa que eu não me lembro e passou a noite aqui, sou interrompida por uma mensagem: 

Já acordei, se quiser pode vir buscar o Zeca. =D

Socorro, o Zeca! Este mistério, claro eufemismo para completo nonsense, me fez esquecer dele, ou seja, de tudo. Confesso que não é a primeira vez que ele tem que passar a noite na casa da monitora da creche pois não consegui busca-lo a tempo. A escolinha funciona até às 19h. Quem, em São Paulo, consegue chegar em qualquer lugar em uma sexta-feira, a esse horário? Talvez os que tenham helicóptero… Creches facilitam a nossa vida, mas também tencionam nosso pescoço com seus rigorosos horários de entrada, sem dizer o de saída. Quase 10 da noite, ao avisar Rita que eu já estava a caminho, recebi o sucinto comunicado de que Zeca tinha brincado o dia todo e, assim como ela, já estava na cama. Uma forma educada de dizer que ir buscá-lo àquela hora só iria incomodá-la ainda mais. Zeca adora Rita, e a adoração é recíproca. Assim, quando cometo essas falhas, penso se tratar de uma festa do pijama, uma noite na casa de amigos. Rita também tem filhos. Ele deve estar adorando. E minha culpa me faz acreditar cegamente em cada palavra.

Prendo meu cabelo de qualquer jeito, passo filtro solar, concluo que meus poros faciais devem desconhecer o que é viver sem serem sufocados por alguma fórmula, e saio correndo. Rita mora a alguns quarteirões de casa. Aquela distância que cansa andando, mas que envergonha ir de carro à luz do dia.

Passo apressadamente pela sinagoga que fica na esquina, mas que naquela manhã parecia habitar a sala ao lado. Por um segundo, a encaro e a ofendo mentalmente. Penso que se tivesse tocado seus sinos um pouco mais cedo, talvez daria tempo de flagrar a incógnita que invadiu minha casa e roubou minha paz. Minha calça de pijama estampada com personagens infantis, minha blusa de alcinha e meus chinelos, contrastam com os ternos e vestidos dos meus vizinhos judeus que acabam de deixar alguma cerimônia sabendo muito bem o que fizeram na noite passada. Aperto o passo, corro os gigantescos quarteirões da Albuquerque Lins enquanto o sol é impiedoso. Enfim, ofegantemente suada, preciso recuperar meu folego diante do prédio de Rita que, por já estar na portaria, revela sua ansiedade em ter um sábado sem responsabilidades além das suas. 

Ao me ver, Zeca faz a festa. Nada de tristeza. Nada de decepção. Nada de cobranças. Nada de mágoa. Nada de humano. Seus olhinhos brilhantes e seu rabão de vira lata para lá e para cá, são só amor e alegria. Rita e seus três cachorros se despedem dele que agora só tem olhos pra mim. Ao ser lambida e perdoada por Zeca, me lembro de quando nos conhecemos…

Estava retornando de um bate e volta a Belo Horizonte onde participei de um seminário. Meu avião acompanhado de mais três demoram a pousar por falta de pista livre em Congonhas. Em São Paulo é assim, congestionamento até no céu. Ficamos sobrevoando o aeroporto e enquanto as pessoas ficavam cada vez mais nervosas, eu permanecia na minha provável irritante tranquilidade. Eu gosto de avião, mas não exatamente por estar presa em uma caixa de ferro a quilômetros do chão e agora com o risco de o combustível acabar. Gosto porque, diferente da minha varanda, meu voyeurismo ganha uma límpida trilha sonora. Me fascina observar os compromissos, as implicâncias em família, as inverossímeis juras dos apaixonados, trabalhadores hiperprodutivos, executivos hipertensos, os dedos inspirados dos escritores, as curiosas reações dos leitores, turma de amigos cheia de expectativas ou ostentando suas aventuras, o dinamismo dos comissários, os constrangedores roncos altamente incontroláveis e o papo de desconhecidos que o destino uniu por uma mesma fileira e que, apesar de trocarem promessas e contatos, muito dificilmente voltará a juntá-los. Experiência própria…

No meio da minha prazerosa bisbilhotagem do cotidiano alheio, é autorizado, finalmente, o nosso pouso. Sexta- feira, final de tarde, garoa – que, convenhamos, hoje em dia tem mais fama do que ocorrência – e um aeroporto lotado eram um retrato do caos. De dentro do avião, pessoas sentindo-se injuriadas gravam dramáticas mensagens de voz relatando a tragédia que acabaram de passar. Mesmo ainda estando inteiramente vivas. Nada é mais patético do que um chilique, mas só percebemos isso quando não é o nosso. Minha pose de pessoa evoluída desaparece assim que constato que não encostamos em nenhum finger. O fato de ter que esperar no meio da pista o ônibus para nos levar até o aeroporto faz com que eu me torne mais um daqueles que se juntam para recarregar a pilha do mau humor e das queixas infrutíferas.

Depois de tanto, transgredindo a regra de só poder pedir carro de aplicativo em determinado local, fui para entrada principal de Congonhas esperando aproveitar o de alguém que acabara de chegar. Minha exaustão engoliu meu senso de coletividade, qualquer minuto a menos para estar em casa valia todo tipo de corrupção. 

O transito chegava a ser sufocante pela sua aparente infinitude. No meio de toda aquela balbúrdia, reparei em uma família: um casal e seus dois filhos que, mesmo ainda crianças, eram marrentos como adultos. E logo atrás o que realmente chamou minha atenção: um enorme e lindo cachorro. 

A mulher e seus filhos entraram apressados no saguão de embarque, enquanto o pai pegou uma bolinha e a lançou para o cachorro ir buscar. Parecia que enquanto estávamos em um mix de Sodama e Gomorra, ele gozava um universo paralelo no meio do Ibirapuera. Ignorando o caos, aquele vira lata lindo, dourado e cheio de energia não demorou muito para alcançar o seu brinquedo, mas não foi tão rápido a tempo de ver a sua própria família virar-lhe as costas. O homem,  após o lançamento, correu para dentro do aeroporto como um fugitivo. Incrédula, voltei meus olhos para o cachorro, que com sua bolinha na boca tentava encontrar o seu dono. 

Sua expressão de alegria logo se transformou enquanto desviava das pessoas que ignoravam sua presença. Os faróis dos carros iluminavam sua aflição, seus olhos dançavam desesperados atrás daqueles sobre os quais eu nada sabia, mas já odiava. Como cão sem dono, há alguns minutos literalmente, seguindo o rastro que só seu focinho enxergava, invadiu o aeroporto. Precisou de alguns funcionários para ser alcançado e, naquele momento eu entendi porque pessoas comuns não podem ter porte de armas. Apesar das buzinas, da chuva, do da alta falação, seu choro uivado sobrepunha todo o resto.

O motorista do aplicativo teve que buzinar para ganhar minha atenção e, quando teve sucesso, tive uma estranha sensação ao constatar que estava a poucos passos de abandonar aquele inferno. Os saltos e o formato dos meus sapatos já molhados torturavam minhas pernas e meus dedos, fazendo com que um banco acolchoado valesse mais que milhões. Abri a porta do carro enquanto razão e emoção duelavam dentro de mim no tempo de um alongado suspiro. Com coração ansioso, me desculpei com aquele simpático condutor, abandonei o carro e me guiei até aquele choro agudo. 

E, se ainda me sobravam dúvidas a respeito da minha decisão, elas evaporaram assim que Zeca – vi seu nome gravado na coleira –  correu em minha direção como se me conhecesse desde sempre. O carinho era tanto que as pessoas acharam realmente que eu era sua dona. Parecia mesmo que Zeca me reconhecia. Hoje eu já acho que ele se reconheceu em mim. Nós nos reconhecemos um no outro.

Assim, Zeca entrou na minha vida e nunca mais foi fácil pegar qualquer meio de transporte, especialmente para sair da cidade. Naquele dia, após vários cancelamentos de corrida ao verem seu tamanho e seu pelo molhado, um senhor mal humorado com a vida, mas de bem com os caninos, aceitou Zeca em seu carro. Com amargura, foi do engarrafado trajeto do aeroporto de Congonhas até Santa Cecília, repetindo que quanto mais ele conhecia os homens – principalmente as mulheres – mais ele amava os animais. Ficou claro para mim que ali dentro existia não apenas um, mas dois corações partidos, porém com certeza só um deles eu levaria para casa.

Mesmo desprovidos de caráter e coração, me desprendo do meu ódio e orgulho para admitir que a antiga família de Zeca brilhou na função de educa-lo. Tirando um xixi em cada canto da casa assim que chegou, para deixar claro quem mandava ali agora, Zeca sempre se comportou como um lorde bon vivant. Um pouco carente na primeira noite, fez com que a promessa dele jamais dormir na minha cama fosse quebrada ali mesmo. E, ali mesmo, descobri que ele não era muito fã da única condição estipulada: banho. Na manhã seguinte, fiquei feliz com a conclusão do veterinário de que ele ainda era novinho, tendo mais ou menos 3 anos de idade. E esse é mais ou menos o tempo que já estamos juntos. 

Enquanto peço desculpas à Rita, não consigo ignorar seu sorriso inexplicavelmente maldoso.

– Muito obrigada mesmo, Rita. Na hora que eu estava saindo tive que substituir uma professora que já me salvou mil vezes. Não tive como negar – disse, enquanto sigo agachada brincando com Zeca e os outros cachorros.

– Deixa de bobagem, Vick . Você sabe que eu adoro o Zeca. – me dando uma olhada geral – A noite foi boa, hein? 

– Como? – respondo gelada e me levanto dura.

– Me conta tudo sobre ele! – revelando-se uma Rita animada, uma versão que eu nunca tinha visto. Seus sorrisos ela só distribui em mensagens de texto. 

– Você me viu com alguém? – receosa da resposta.

Rita assente sorrindo, sigo tentando repostas mais verbais.

– Como que ele era? Quer dizer, você achou ele bonito? Alto?

Rita aponta para os meus braços. Na correria, saí descoberta deixando toda a minha aflição à mostra.

– Vi nada, só estou vendo as digitais que ele deixou.

– Ah, para de bobagem, isso foi academia… – tento disfarçar. 

–  Que mãozona ele tem. Nossa…  – Rita me ignora e se lamenta –  Não me lembro a última vez que senti o peso de um homem em cima de mim.  

Pelo visto eu também não. Sem muita paciência para meu comportamento blasé e – para ela – sonso, Rita aproxima-se de mim reproduzindo com as próprias mãos que aqueles roxos têm exatamente o formato de alguém me pegando com força pelos braços. As marcas redondas se encaixam em seus dedos ao me apertarem, apesar de mais distantes e mais grossos que os dela.

Zeca pula e nos separa. Por mais que goste de Rita, minha posição vulnerável aciona o seu instinto protetor. Até faria sentido “esquecê-lo” para fazer o que Rita imagina que eu fiz. Quando faço sexo, preciso controlar os sons do meu prazer para que Zeca não arrombe a porta, preventivamente trancada, e ataque qualquer pessoa que esteja em cima, embaixo ou embaralhado em mim. Neste momento, decido não destruir as fantasias de Rita e, sem confirmar literalmente, imito seu sorrio malicioso como se tivesse sido pega e confessa. Melhor ter vivido uma noite tórrida de amor do que assumir meu suspeito e controverso apagão. Até porque eu não sei mesmo o que aconteceu. E sexo está longe de ser uma das piores hipóteses. 

Assim, tomamos o caminho de casa. Quando me dou conta, estamos na porta do nosso prédio e nem me lembro de ter andado até lá. Acho, na verdade tenho certeza, de que foi ele que me conduziu até em casa e não o contrário. Eu só conseguia pensar taças, banho, pratos, dedos, marcas, marcas de dedos. 

Ao colocar meu dedo no portão de biometria, lamento a tecnologia de portaria remota, onde os porteiros foram substituídos por atendentes em uma central, tipo call center, que nem Deus sabe onde é. Modernidades que furtam nossos direitos de termos um porteiro presencial para vigiar nossas vidas, fofocar sobre elas, nos deixar sem graça ao acordá-los de madrugada e para me dizer quem saiu da minha casa hoje de manhã! Olhei para as câmeras de segurança e tive a óbvia ideia de pedir para ter acesso às suas imagens. Só que o que iria alegar? Não sei o que fiz ontem à noite? Mentir que fui furtada? Bem nerd, eu já tinha lido o manual do condomínio de cabo a rabo e sabia bem que para assistir às gravações, precisava apresentar um boletim de ocorrência. Toda uma burocracia para preservar a intimidade dos moradores e, aparentemente, da pessoa que entrou na minha casa, me deu um boa noite cinderela, foi embora sem deixar nenhum bilhete, mas não sem antes se lavar ao invés de lavar as minhas louças. 

Zeca gosta de sair, mas como todos nós, adora voltar para casa. Observo seu comportamento esperando que o seu faro identifique algo que o meu olfato humano deixou escapar. Sempre que conheço alguém ou que acaricio outro cachorro por meio segundo, quando nos encontramos Zeca reage desconfiado e agitado. Ele não tinha estranhado nada até então, mas estávamos na rua envoltos a inúmeras distrações para seu focinho. Em casa poderia ser diferente… Que nada! Zeca nunca esteve tão normal. E assim, inspirada por policiais com seus farejadores de drogas, conduzo meu santo cachorro por todos os cantos da casa. O único sinal que Zeca faz é de tédio.

Tentando encerrar este assunto de vez, jogo fora as garrafas de vinho, lavo as taças e pratos, seco, os devolvo para o armário e coloco a toalha de hóspedes, e até o tapete, na máquina de lavar. Parecendo uma criminosa, elimino os rastros como se isso eliminasse o que tivesse acontecido.  

No banho, reparo os detalhes das marcas que eu não tenho como apagar. O espelho que cobre inteiramente a parede oposta ao chuveiro, não deixa de expor nenhum centímetro do meu corpo. Algumas marcas já têm tempo que me cobrem. As novas me fazem sentir arrepios e, ao pressioná-las, dor. Não consigo parar de pensar em quem poderia estar refletido ali hoje de manhã. Olho os vidro do box com cuidado, procurando algum desenho ou sinal. Hesito por alguns segundos mas acabo escorregando minha mão e me toco, no anseio de que possa acordar alguma lembrança. Enquanto passeio em mim, fecho os olhos tentando voltar no tempo que eu perdi e achar qualquer pegada mental, mas a única coisa que eu encontro é um inesperado prazer e uma dor de cabeça que fica cada vez mais latente. 

Depois de um almoço sem graça e sem sentir o gosto do um quarto da comida que eu não desperdicei, me deito no sofá. Zeca vem correndo me fazer companhia, roubando mais da metade do espaço. Um dos sons que mais me alegra e acalma é o barulhinho de suas patas no meu chão de taco. Não deixo de pensar que se Zeca estivesse comigo, talvez meu dia seguiria conforme planejado: sem nenhuma – nova – angústia. Ao abandoná-lo com Rita, eu que fiquei só. Ao pensar nisso, fico mais atormentada: será que sabiam que eu estava sozinha? Será que além de observar, eu também sou observada? Minha exaustão mental e natureza fazem com que eu não demore a pegar no sono. Depois de dois minutos ou duas horas, o interfone interrompe minha fuga. Parece mesmo que o dia me quer acordada. Desesperado de alegria, os latidos de Zeca sufocam as palavras do porteiro remoto – que pode estar na China -, e com muito esforço de ambos os lados, entendo que tem uma entrega para mim. Compras online são um dos meus esportes favoritos…

Quando chego na portaria, vejo um entregador com um imenso buquê de flores. Fico sem saber como agir, até que ele elimina minhas poucas opções:

– Victória?

– S… So.. Sou eu. – pego o buquê no automático, enquanto Zeca não para de fazer festa para o rapaz que brinca com ele de volta. 

Uma vizinha animada, que entra no prédio ao mesmo tempo, vibra com o meu presente e sua empolgação nos acompanha até o meu andar. Ao entrar em casa, fico na dúvida se agradeci ou não o entregador. Se dei boa tarde para a vizinha. Desprezo quem não faz o mínimo. Só que hoje outra preocupação suplantou as boas maneiras.

Ao ajeitar o buquê acompanhado por vários espirros, vejo um pequeno cartão mergulhado no meio de tantas flores do campo. 

Adorei nossa noite. 

Sem assinatura, sem caligrafia, essas três palavras datilografadas em máquina de escrever não me dizem nada, exceto que não dava mais para fingir que tive um surto de sonambulismo com esquizofrenia e bebi 3 garrafas de vinhos em duas taças diferentes para não me sentir tão só. Era real. Alguém esteve mesmo aqui em casa. E aparentemente adorou. Não parecia mais um bandido que me drogou e fez tudo que podia, inclusive adivinhar minhas flores favoritas. E ao que pouco indica, sabe ser intenso na sombra da noite e gentil à luz do sol. O que eu não me lembro foi tudo, menos ordinário. Nesses nossos tempos, prova de amor é telefonar ao invés de mandar mensagem. Enviar um buquê de flores me escapa a definição. Algo que, eu acho, nunca vi fora das centenas de filmes e livros – os antigos –  que cobrem minhas paredes.

Meu corpo se arrepia enquanto minha nuca queima ao mesmo tempo que chego a sentir mini fincadas na cabeça. Zeca me encara como se enxergasse meu medo, um dos muitos sentimentos e invulgares sensações que tomam conta de mim. Só que os meus pensamentos se resumem a apenas um, como um mantra dentro da minha mente:

Não é possível. Não é possível que isto está acontecendo… de novo.

Minha vizinha volta a cantar….

Sou frágil, marque-me de vermelho: Capítulo 1

Em Sou frágil, marque-me de vermelho, uma exposição de arte inspirada nos contos perdidos de um blogueiro desaparecido há vinte anos reacende o interesse por aquelas histórias. A busca pelo abismo, o grande tema da obra, volta a unir os poucos que ainda se lembram dela. 

Mas o que seria um reencontro nostálgico ganha contornos inquietantes, quando começam a suspeitar que pouco daquilo é ficção.

Escrita por Filipe de Campos Ribeiro, vencedor do prêmio ABERST 2019 de melhor romance de Horror, a obra é um passeio pelo labirinto da cidade, cujos nomes dados a rodovias, ruas e edifícios revelam os horrores que tornaram os paulistas quem eles são.

O mundo está quieto. A cidade se movimenta num oceano de ruídos, e das poucas vozes distinguíveis, nenhuma fala com você. Um ônibus elétrico passa e nós sabemos: estamos em São Paulo, na última semana de 1999.

São os últimos momentos do milênio, que parece uma década, e nem isso é. Na cidade esvaziada, só os mais pobres ficaram. Todos os nossos amigos estão por aqui. Sob essa vastidão fervilhante, um tráfego intenso desperta nas primeiras horas da meia noite. Os primeiros retrógrados não demoraram a rotular a internet de “reino do efêmero”. Hoje, vinte anos depois, sabemos que eles estavam certos. 

Olhando para trás, aquelas milhares de conversas digitadas, ansiadas e desesperadas não parecem mais tão importantes. Mais que isso, todas aquelas discussões, fotos e pessoas foram esquecidas. Os servidores enferrujados, as páginas à deriva. Relegadas a um esquecimento tão absoluto que parece que nunca aconteceu. Mas divago.

Voltamos à meia noite do dia 28 de dezembro de 1999. 

As janelas acesas atestam que o universo paralelo está inquieto. Acabam de se dar conta que Alex Quadrado está desaparecido. Ou morto. É impossível confirmar. Só sabemos o que nos contam.

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Marcamos de nos encontrar na catraca do metrô Barra Funda às 5h30 da manhã. Assim a cidade ainda estaria deserta e poderíamos ser surpreendidos com o amanhecer. Ela chegou luminosa, seus olhos fundos realçavam que também tinha dormido pouco. 

Estávamos de mochila, mas não iríamos para o cursinho. Naquela época, a idéia de futuro parecia tão fictícia quanto Adão e Eva. Estávamos reencenando a história de dois personagens de um conto de Alex Quadrado. Só que no conto os dois eram amantes. Nós não, ainda. Queríamos refazer seu itinerário, embora soubéssemos que, no fim, não veríamos o abismo. Era a nossa homenagem a ele, ainda que, quando se tem dezessete anos, quase nada do que escolhemos fazer seja pelo motivo que achamos que é. Depois piora.

Não bebíamos, a promessa de eventos inesperados nos bastava. 

Amanhecia quando avistamos a bifurcação da rua Clélia com a Guaicurus, meu caminho preferido na cidade. Nunca houve um dia ruim na Pompéia. 

Passamos por um McDonald’s, que ficava dentro de um estacionamento vazio. Caminhávamos lado a lado, sem nunca olhar para trás.

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Vinte anos se passaram e aqui estou, de novo, o mesmo caminho. Por onde já passei várias vezes, desde então. E é sempre bom. A existência da menina, mesmo seu nome, jazem esquecidos no rio da memória. Como tantas outras coisas daquele mundo de então.

Na São Paulo de 2020, só as ruas – e o McDonald’s – ainda são os mesmos. E o SESC Pompéia, para onde estou indo para ver uma exposição. Que despertou minha curiosidade por um detalhe, quase despercebido: uma corajosa menção, feita por um crítico, ao agora desconhecido Alex Quadrado.

Um labirinto tinha sido construído dentro do galpão do SESC. A descrição da exposição dizia que as obras eram “Esfinges invertidas. Só os que não as decifrarem verão nelas obras de arte. Os outros verão outra coisa”. O resto da descrição, cuja totalidade me escapa, dizia coisas como “quando éramos nós mesmos”, ou “ele sabia de tudo e nós não ouvimos”.

Não mencionava o nome mas, assim como o crítico, eu imediatamente soube. Era como ouvir a descrição de um amigo em comum.

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O que encontrei lá dentro, tento agora descrever. Era como se deparar com um abismo antigo, um sentimento de horror conhecido, que levou anos para ser abafado. E agora ele estava lá, pronto para aniquilar, pétala por pétala, nossa fome de viver.

A cada beco sem saída havia uma pintura, meio medíocre, de uma cena tirada de algum conto do escritor.  A cada caminho errado eu me deparava com uma angústia. Tudo muito confuso.

Mas me lembro de uma das pinturas: um casal, ainda jovem, que tem um encontro num quarto. Muito magros, parecem apaixonados. Conversam com infinita seriedade em cima da cama. Ao lado deles há um prato com migalhas onde um sanduíche fora devorado. Ao lado do prato um plástico com uma fina fatia de mussarela que sobrou. O quarto é pequeno e os móveis são muito simples, assim como o batente da janela por onde entra o entardecer. E naquele instante eu soube… Era o casal do conto que tínhamos reencenado, naquela manhã primeva. O mais impressionante foi perceber: essa cena nunca existiu no conto. Mas, por algum mistério, eu sabia que eram eles. Só que não era deles que se tratava. Era como se, através daqueles personagens, o pintor tivesse retratado eu e a menina. Meu peito era um bote à deriva, pressentindo a aproximação de um longo salto sem pedras. Tanta coisa voltou, com tanta clareza, que já não sabia se sairia dali eu mesmo. 

Quando avistei a saída, vislumbrei uma última pintura, à esquerda. Era Adão e Eva, a Árvore e a Serpente. “Qual desses elementos é ficcional?”, indagava a pergunta na parede. Eu sabia a resposta! Era a Serpente. 

De novo, não havia nenhuma cena sobre A Queda na obra de Alex. Mas eu sabia, havia um conto que tratava do Mal puro, como a radioatividade, que dizia a certa altura: “O Mal não quer nada de você”.

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Desnorteado e confuso, eu caminhava, como num sonho, para longe daquele lugar escuro. Instintivamente percebi que refazia o resto do percurso do casal do conto. Virei na rua que acabava nos fundos de um centro cultural, emoldurada pelo muro da estrada de ferro. Como os dois no conto, pulei o muro que dava para os trilhos. 

Nuvens muito escuras rugiam ao longe. Me virei ao ouvir o silvo do trem, e vi. Aquela paisagem dos trilhos, cuja disposição dos elementos, sob aquela perspectiva, formava a figura de uma catedral do Mal. E, então, eu vi o abismo… 

É possível que algo tenha se acendido ali. E que nunca mais tenha parado de queimar. Mas, naquele instante de perdição, fui salvo por um movimento. Do lado dos vivos, fora dos trilhos, vi duas mãos segurando a grade que dava para o centro cultural, à beira da ferrovia. 

  • Marcelo?

O trem passou atrás de mim, interrompendo a conversa. Sim, era ela. Uma lembrança perfeita, não tão magra, de roupa social. Um elemento estranho naquele lugar de artistas despojados. 

  • Não lembro do seu nome! – Supliquei, como me desculpando.
  • Tudo bem – ela disse. – Normal.
  • Qual é o seu nome?
  • Adriana.

É claro! Adriana. Me perguntei que outras coisas que tiveram suma importância eu também não lembrava.

O trem já tinha sumido na curva, mas era como se ainda passasse.

  • Você foi lá também? – ela perguntou, e notei que tinha o rosto manchado de maquiagem. Falava da exposição, tudo já estava dado.
  • Fui – e silêncio, os dois calados por um tempo.
  • Tá legal aí?

E eu ri. Nós rimos. Trepei na cerca que separava a ferrovia da cidade e aterrissei dentro do Tendal da Lapa. E ela me abraçou. Nos abraçamos. Um segurança apareceu na plataforma para depois desaparecer. Ela chorava. Ainda abraçados, como se aquele encontro trouxesse uma pequena compensação por todo aquele pesadelo reeditado, agora sem as promessas da juventude. Se fora tão devastador para mim, só podia imaginar o que tinha sido para ela.

  • Tá tudo bem? – perguntei quando se soltou dos meus braços.
  • Tá… Você tem que ir?
  • Não agora. E você? 
  • Não também. Tinha um cliente para visitar, mas foda-se.
  • Você também é vendedora?
  • Sou. Vendo macarrão instantâneo. Nissin Miojo.
  • Que legal!
  • Super! 
  • Aposto que você seduz seus clientes.
  • Óbvio!
  • Eu vendo cursos de inglês.
  • Que sexy! Deve ganhar menos que eu!
  • Sem dúvida! – eu disse, e rimos.
  • Agora que já sabemos tudo um do outro, você toma café?

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Caminhamos de volta até o Shopping, onde outrora havia um rink de patinação no gelo. Tìnhamos patinado e caído juntos, naquele mesmo dia. Parecia que queríamos reencenar nossa própria história, um mundo possível que não aconteceu ao pegarmos o desvio que nos trouxe até ali. A praça de alimentação era padronizada, desinteressante, tinha sido obviamente um erro ir para lá. Ela tomava um café que não existia naquela época.

  • Você vende miojo para redes de supermercado?
  • Pelo amor de Deus, para com isso! – protestou. – Você viu o que eu vi!
  • Vi – mas não queria lembrar. Me veio uma lembrança então, bem mais agradável.

Lembrei do quarto dela, o Sol brilhando na metade da cama dela, naquela cidade esquecida. A cama e as suas cortinas selvagens. O que quer que ele iluminasse ali hoje, iluminava sozinho. 

  • Você ainda mora lá? – arrisquei.
  • Não. 
  • Sua mãe mora ainda?
  • Minha mãe morreu. Era alugado.
  • Sinto muito.
  • Tudo bem – ela fez um gesto com a mão, enterrando o assunto. – O que foi aquilo? Por que trazer isso de volta?
  • Nunca tinha ouvido falar desse pintor. Mas não é a primeira vez que alguém traz coisas do Alex – confessei, com medo de parecer paranóico.
  • Não?
  • O bilhete único mensal. Você tem um? 
  • Não. 
  • Quando lançaram, você tinha que se cadastrar. Mandar uma foto para a secretaria de transportes e podia escolher um template. Tinha quatro opções. O Anhangabaú, a Paulista com o MASP, o Auditório no parque do Ibirapuera ou o Teatro Municipal. São os lugares onde o personagem de um conto do Alex, “Oroboros”, se não me engano, visita antes de se matar.
  • São os pontos turísticos da cidade também! – Protestou. – Não pode ser coincidência?
  • Claro que pode! Mas por que esses? – Indaguei. – E por que, nas imagens, eles estão exatamente na mesma perspectiva que o Alex descreve no conto?
  • Pode ser muito coincidência – insistiu. – E a perspectiva que ele descreve também depende de quem lê.
  • Pode ser – eu disse. – Mas me faz pensar em que outras ramificações a obra dele pode ter tido, e a gente nem sabe. Por que não é uma coisa que se conta abertamente. “Baseei meu trabalho em um blog de terror trash dos anos 90”!
  • É verdade, pega até mal falar disso. Pega mal estarmos aqui, termos ido nessa exposição! Não é o tipo de coisa que a gente vai contar no trabalho.
  • Não – concordei.
  • Mas que aquelas histórias, nossa fixação por elas, fez mais mal do que bem, isso é verdade. Eu nem sabia, mas percebi hoje. 
  • Percebeu o quê?
  • As histórias… Nos legaram um niilismo auto destrutivo, disfarçado de amor à vida. E quando nos agarramos a algo, afundamos o mundo ao redor – ela disse, e se calou.

Eu também. Traduzia bem o que suspeitávamos, agora, ser a fonte de todas as nossas dificuldades. Era verdade para mim, devia ser para ela também. E então me senti mais perto dela do que jamais me sentira. Quis beijá-la, agarrá-la pelos cabelos e beijá-la, mas me detive. Seria feminista?

Toda o meu ímpeto arrefeceu quando ela, de novo distante, declamou:

  • O horror à incerteza destila a alma desses desesperados. Enquanto perdem cada vez mais o contato com a realidade. Um dia, essas pessoas em posição fetal vão se levantar”.
  • Eu lembro desse conto – eu disse.
  • Lembra que falamos do bug do milênio. Naquele dia, que viemos para cá?
  • Não – confessei. – Desculpe.
  • Claro que não – ela disse. – Mas ele falava sempre do Mal, de personagens que encontram o abismo. Aquele mal que, apesar de não ser consciente, lutava para sobreviver.
  • E se espalhar – completei. – Você acha que esse Mal pode ter evitado o bug do milênio porque viu na internet um meio perfeito de se perpetuar?
  • Não dá pra saber, mas acho sim – ela sorriu, feliz que fora eu que formulara essa idéia. – Ele sabia de tudo mesmo. E nós não o ouvimos – ela disse, repetindo a descrição da exposição. 
  • Mas sobrevivemos bem. Tá bom, né?
  • Muito! – Concordou. – Tenho que ir, tenho um cliente às quatro e meia.
  • Adriana – eu disse, e estendi a mão, alcancei o seu braço. 
  • Marcelo – ela deixou. Como era doce ouvir meu nome assim.
  • Você tá casada? Tem filhos?
  • Eu saio bastante. E tenho uma filha. Achei que tendo filhos eu pensaria que sou feliz. “Mas agora, penduro as roupas pra secar…” – disse, declamando uma passagem de Alex.
  • … e você acaba de perceber.” – Eu disse, completando.

Apertou a minha mão, que estava na dela desde antes. E a recolheu.

  • Você tem Facebook? – perguntei, sabendo o quão estúpido eu soava. Uma última tentativa de agarrar algo que desvanecia. 
  • Não, nada. Tenho telefone, já salvei no seu!
  • Como assim?
  • Quando você foi no banheiro – ela sorriu, se levantando da mesa.
  • Mas tem senha.
  • Tentei só uma, aquela do “Número Mágico” – ela disse, outro conto dele.
  • Quando as senhas eram palavras a gente punha o nome de cachorros mortos – eu disse.
  • Eu acertaria também – e riu, ri também. Estava com pressa. – Bom dia!
  • Bom dia – eu disse, mas ela já tinha se virado.