Sou frágil, marque-me de vermelho: Capítulo 1

Em Sou frágil, marque-me de vermelho, uma exposição de arte inspirada nos contos perdidos de um blogueiro desaparecido há vinte anos reacende o interesse por aquelas histórias. A busca pelo abismo, o grande tema da obra, volta a unir os poucos que ainda se lembram dela. 

Mas o que seria um reencontro nostálgico ganha contornos inquietantes, quando começam a suspeitar que pouco daquilo é ficção.

Escrita por Filipe de Campos Ribeiro, vencedor do prêmio ABERST 2019 de melhor romance de Horror, a obra é um passeio pelo labirinto da cidade, cujos nomes dados a rodovias, ruas e edifícios revelam os horrores que tornaram os paulistas quem eles são.

O mundo está quieto. A cidade se movimenta num oceano de ruídos, e das poucas vozes distinguíveis, nenhuma fala com você. Um ônibus elétrico passa e nós sabemos: estamos em São Paulo, na última semana de 1999.

São os últimos momentos do milênio, que parece uma década, e nem isso é. Na cidade esvaziada, só os mais pobres ficaram. Todos os nossos amigos estão por aqui. Sob essa vastidão fervilhante, um tráfego intenso desperta nas primeiras horas da meia noite. Os primeiros retrógrados não demoraram a rotular a internet de “reino do efêmero”. Hoje, vinte anos depois, sabemos que eles estavam certos. 

Olhando para trás, aquelas milhares de conversas digitadas, ansiadas e desesperadas não parecem mais tão importantes. Mais que isso, todas aquelas discussões, fotos e pessoas foram esquecidas. Os servidores enferrujados, as páginas à deriva. Relegadas a um esquecimento tão absoluto que parece que nunca aconteceu. Mas divago.

Voltamos à meia noite do dia 28 de dezembro de 1999. 

As janelas acesas atestam que o universo paralelo está inquieto. Acabam de se dar conta que Alex Quadrado está desaparecido. Ou morto. É impossível confirmar. Só sabemos o que nos contam.

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Marcamos de nos encontrar na catraca do metrô Barra Funda às 5h30 da manhã. Assim a cidade ainda estaria deserta e poderíamos ser surpreendidos com o amanhecer. Ela chegou luminosa, seus olhos fundos realçavam que também tinha dormido pouco. 

Estávamos de mochila, mas não iríamos para o cursinho. Naquela época, a idéia de futuro parecia tão fictícia quanto Adão e Eva. Estávamos reencenando a história de dois personagens de um conto de Alex Quadrado. Só que no conto os dois eram amantes. Nós não, ainda. Queríamos refazer seu itinerário, embora soubéssemos que, no fim, não veríamos o abismo. Era a nossa homenagem a ele, ainda que, quando se tem dezessete anos, quase nada do que escolhemos fazer seja pelo motivo que achamos que é. Depois piora.

Não bebíamos, a promessa de eventos inesperados nos bastava. 

Amanhecia quando avistamos a bifurcação da rua Clélia com a Guaicurus, meu caminho preferido na cidade. Nunca houve um dia ruim na Pompéia. 

Passamos por um McDonald’s, que ficava dentro de um estacionamento vazio. Caminhávamos lado a lado, sem nunca olhar para trás.

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Vinte anos se passaram e aqui estou, de novo, o mesmo caminho. Por onde já passei várias vezes, desde então. E é sempre bom. A existência da menina, mesmo seu nome, jazem esquecidos no rio da memória. Como tantas outras coisas daquele mundo de então.

Na São Paulo de 2020, só as ruas – e o McDonald’s – ainda são os mesmos. E o SESC Pompéia, para onde estou indo para ver uma exposição. Que despertou minha curiosidade por um detalhe, quase despercebido: uma corajosa menção, feita por um crítico, ao agora desconhecido Alex Quadrado.

Um labirinto tinha sido construído dentro do galpão do SESC. A descrição da exposição dizia que as obras eram “Esfinges invertidas. Só os que não as decifrarem verão nelas obras de arte. Os outros verão outra coisa”. O resto da descrição, cuja totalidade me escapa, dizia coisas como “quando éramos nós mesmos”, ou “ele sabia de tudo e nós não ouvimos”.

Não mencionava o nome mas, assim como o crítico, eu imediatamente soube. Era como ouvir a descrição de um amigo em comum.

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O que encontrei lá dentro, tento agora descrever. Era como se deparar com um abismo antigo, um sentimento de horror conhecido, que levou anos para ser abafado. E agora ele estava lá, pronto para aniquilar, pétala por pétala, nossa fome de viver.

A cada beco sem saída havia uma pintura, meio medíocre, de uma cena tirada de algum conto do escritor.  A cada caminho errado eu me deparava com uma angústia. Tudo muito confuso.

Mas me lembro de uma das pinturas: um casal, ainda jovem, que tem um encontro num quarto. Muito magros, parecem apaixonados. Conversam com infinita seriedade em cima da cama. Ao lado deles há um prato com migalhas onde um sanduíche fora devorado. Ao lado do prato um plástico com uma fina fatia de mussarela que sobrou. O quarto é pequeno e os móveis são muito simples, assim como o batente da janela por onde entra o entardecer. E naquele instante eu soube… Era o casal do conto que tínhamos reencenado, naquela manhã primeva. O mais impressionante foi perceber: essa cena nunca existiu no conto. Mas, por algum mistério, eu sabia que eram eles. Só que não era deles que se tratava. Era como se, através daqueles personagens, o pintor tivesse retratado eu e a menina. Meu peito era um bote à deriva, pressentindo a aproximação de um longo salto sem pedras. Tanta coisa voltou, com tanta clareza, que já não sabia se sairia dali eu mesmo. 

Quando avistei a saída, vislumbrei uma última pintura, à esquerda. Era Adão e Eva, a Árvore e a Serpente. “Qual desses elementos é ficcional?”, indagava a pergunta na parede. Eu sabia a resposta! Era a Serpente. 

De novo, não havia nenhuma cena sobre A Queda na obra de Alex. Mas eu sabia, havia um conto que tratava do Mal puro, como a radioatividade, que dizia a certa altura: “O Mal não quer nada de você”.

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Desnorteado e confuso, eu caminhava, como num sonho, para longe daquele lugar escuro. Instintivamente percebi que refazia o resto do percurso do casal do conto. Virei na rua que acabava nos fundos de um centro cultural, emoldurada pelo muro da estrada de ferro. Como os dois no conto, pulei o muro que dava para os trilhos. 

Nuvens muito escuras rugiam ao longe. Me virei ao ouvir o silvo do trem, e vi. Aquela paisagem dos trilhos, cuja disposição dos elementos, sob aquela perspectiva, formava a figura de uma catedral do Mal. E, então, eu vi o abismo… 

É possível que algo tenha se acendido ali. E que nunca mais tenha parado de queimar. Mas, naquele instante de perdição, fui salvo por um movimento. Do lado dos vivos, fora dos trilhos, vi duas mãos segurando a grade que dava para o centro cultural, à beira da ferrovia. 

  • Marcelo?

O trem passou atrás de mim, interrompendo a conversa. Sim, era ela. Uma lembrança perfeita, não tão magra, de roupa social. Um elemento estranho naquele lugar de artistas despojados. 

  • Não lembro do seu nome! – Supliquei, como me desculpando.
  • Tudo bem – ela disse. – Normal.
  • Qual é o seu nome?
  • Adriana.

É claro! Adriana. Me perguntei que outras coisas que tiveram suma importância eu também não lembrava.

O trem já tinha sumido na curva, mas era como se ainda passasse.

  • Você foi lá também? – ela perguntou, e notei que tinha o rosto manchado de maquiagem. Falava da exposição, tudo já estava dado.
  • Fui – e silêncio, os dois calados por um tempo.
  • Tá legal aí?

E eu ri. Nós rimos. Trepei na cerca que separava a ferrovia da cidade e aterrissei dentro do Tendal da Lapa. E ela me abraçou. Nos abraçamos. Um segurança apareceu na plataforma para depois desaparecer. Ela chorava. Ainda abraçados, como se aquele encontro trouxesse uma pequena compensação por todo aquele pesadelo reeditado, agora sem as promessas da juventude. Se fora tão devastador para mim, só podia imaginar o que tinha sido para ela.

  • Tá tudo bem? – perguntei quando se soltou dos meus braços.
  • Tá… Você tem que ir?
  • Não agora. E você? 
  • Não também. Tinha um cliente para visitar, mas foda-se.
  • Você também é vendedora?
  • Sou. Vendo macarrão instantâneo. Nissin Miojo.
  • Que legal!
  • Super! 
  • Aposto que você seduz seus clientes.
  • Óbvio!
  • Eu vendo cursos de inglês.
  • Que sexy! Deve ganhar menos que eu!
  • Sem dúvida! – eu disse, e rimos.
  • Agora que já sabemos tudo um do outro, você toma café?

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Caminhamos de volta até o Shopping, onde outrora havia um rink de patinação no gelo. Tìnhamos patinado e caído juntos, naquele mesmo dia. Parecia que queríamos reencenar nossa própria história, um mundo possível que não aconteceu ao pegarmos o desvio que nos trouxe até ali. A praça de alimentação era padronizada, desinteressante, tinha sido obviamente um erro ir para lá. Ela tomava um café que não existia naquela época.

  • Você vende miojo para redes de supermercado?
  • Pelo amor de Deus, para com isso! – protestou. – Você viu o que eu vi!
  • Vi – mas não queria lembrar. Me veio uma lembrança então, bem mais agradável.

Lembrei do quarto dela, o Sol brilhando na metade da cama dela, naquela cidade esquecida. A cama e as suas cortinas selvagens. O que quer que ele iluminasse ali hoje, iluminava sozinho. 

  • Você ainda mora lá? – arrisquei.
  • Não. 
  • Sua mãe mora ainda?
  • Minha mãe morreu. Era alugado.
  • Sinto muito.
  • Tudo bem – ela fez um gesto com a mão, enterrando o assunto. – O que foi aquilo? Por que trazer isso de volta?
  • Nunca tinha ouvido falar desse pintor. Mas não é a primeira vez que alguém traz coisas do Alex – confessei, com medo de parecer paranóico.
  • Não?
  • O bilhete único mensal. Você tem um? 
  • Não. 
  • Quando lançaram, você tinha que se cadastrar. Mandar uma foto para a secretaria de transportes e podia escolher um template. Tinha quatro opções. O Anhangabaú, a Paulista com o MASP, o Auditório no parque do Ibirapuera ou o Teatro Municipal. São os lugares onde o personagem de um conto do Alex, “Oroboros”, se não me engano, visita antes de se matar.
  • São os pontos turísticos da cidade também! – Protestou. – Não pode ser coincidência?
  • Claro que pode! Mas por que esses? – Indaguei. – E por que, nas imagens, eles estão exatamente na mesma perspectiva que o Alex descreve no conto?
  • Pode ser muito coincidência – insistiu. – E a perspectiva que ele descreve também depende de quem lê.
  • Pode ser – eu disse. – Mas me faz pensar em que outras ramificações a obra dele pode ter tido, e a gente nem sabe. Por que não é uma coisa que se conta abertamente. “Baseei meu trabalho em um blog de terror trash dos anos 90”!
  • É verdade, pega até mal falar disso. Pega mal estarmos aqui, termos ido nessa exposição! Não é o tipo de coisa que a gente vai contar no trabalho.
  • Não – concordei.
  • Mas que aquelas histórias, nossa fixação por elas, fez mais mal do que bem, isso é verdade. Eu nem sabia, mas percebi hoje. 
  • Percebeu o quê?
  • As histórias… Nos legaram um niilismo auto destrutivo, disfarçado de amor à vida. E quando nos agarramos a algo, afundamos o mundo ao redor – ela disse, e se calou.

Eu também. Traduzia bem o que suspeitávamos, agora, ser a fonte de todas as nossas dificuldades. Era verdade para mim, devia ser para ela também. E então me senti mais perto dela do que jamais me sentira. Quis beijá-la, agarrá-la pelos cabelos e beijá-la, mas me detive. Seria feminista?

Toda o meu ímpeto arrefeceu quando ela, de novo distante, declamou:

  • O horror à incerteza destila a alma desses desesperados. Enquanto perdem cada vez mais o contato com a realidade. Um dia, essas pessoas em posição fetal vão se levantar”.
  • Eu lembro desse conto – eu disse.
  • Lembra que falamos do bug do milênio. Naquele dia, que viemos para cá?
  • Não – confessei. – Desculpe.
  • Claro que não – ela disse. – Mas ele falava sempre do Mal, de personagens que encontram o abismo. Aquele mal que, apesar de não ser consciente, lutava para sobreviver.
  • E se espalhar – completei. – Você acha que esse Mal pode ter evitado o bug do milênio porque viu na internet um meio perfeito de se perpetuar?
  • Não dá pra saber, mas acho sim – ela sorriu, feliz que fora eu que formulara essa idéia. – Ele sabia de tudo mesmo. E nós não o ouvimos – ela disse, repetindo a descrição da exposição. 
  • Mas sobrevivemos bem. Tá bom, né?
  • Muito! – Concordou. – Tenho que ir, tenho um cliente às quatro e meia.
  • Adriana – eu disse, e estendi a mão, alcancei o seu braço. 
  • Marcelo – ela deixou. Como era doce ouvir meu nome assim.
  • Você tá casada? Tem filhos?
  • Eu saio bastante. E tenho uma filha. Achei que tendo filhos eu pensaria que sou feliz. “Mas agora, penduro as roupas pra secar…” – disse, declamando uma passagem de Alex.
  • … e você acaba de perceber.” – Eu disse, completando.

Apertou a minha mão, que estava na dela desde antes. E a recolheu.

  • Você tem Facebook? – perguntei, sabendo o quão estúpido eu soava. Uma última tentativa de agarrar algo que desvanecia. 
  • Não, nada. Tenho telefone, já salvei no seu!
  • Como assim?
  • Quando você foi no banheiro – ela sorriu, se levantando da mesa.
  • Mas tem senha.
  • Tentei só uma, aquela do “Número Mágico” – ela disse, outro conto dele.
  • Quando as senhas eram palavras a gente punha o nome de cachorros mortos – eu disse.
  • Eu acertaria também – e riu, ri também. Estava com pressa. – Bom dia!
  • Bom dia – eu disse, mas ela já tinha se virado.