A São Paulo da década de trinta era um lugar formidável para os espíritos que estivessem em busca de diversões e entretenimento. Thássio Rodriguez Capranera, autor de O robe amarelo e Ditirambos na Cantábria antiga, nos leva para um tour nesta cidade velha, decadente, chuvosa e secreta. Em A casa das romãs, dois amigos, ébrios e entediados, descobrem nos encantos dos lugares iluminados horrores muito além dos sugeridos na própria escuridão.
Estávamos eu e meu amigo Josefo, sentados à mesa de um café na Rua Direita, quando um estranho nos abordou pedindo por fósforos. Camilo, impaciente, afugentou-o com um gesto rude e um rosnado; o pobre sujeito, andrajoso, a pele tomada por chagas abertas e vermelhas, úmidas, afastou-se, um cachimbo indecentemente escurecido na boca; com o olhar tristonho, aquele prometheus das mazelas foi buscar seu fogo do conhecimento em uma outra mesa.
— Esses infelizes, não cansam de nos pedir coisas? — Josefo era um bruto, mas não uma alma ruim, isto deve ser dito.
— Ora, é apenas um pedinte, eles são assim… Não seja tão grosseiro.
Josefo levou a xícara de café à boca, e em um sinal de repulsa ao gosto da bebida, torceu as feições e devolveu a xícara ao seu pires. Uma borboleta amarela pousou sobre a mesa, próximo de minha bebida. Distraído, eu a encarei com aquele assombro que nos toma de assalto quando diante de uma distinta aparição, enquanto Josefo, irritado, balbuciava e rosnava como um macaco japonês alguma imprecação contra o sabor da bebida que lhe fora servida.
Não que não gostasse de café, mas Josefo — e entendam de uma vez por todas — é um desses estetas que encontram defeitos em qualquer coisa na qual possam aplicar seus conhecimentos. Naturalmente, os sabores lhe vinham à boca sempre com uma carga insuportável de palestras, as quais proferia, com algum fervor, sempre que algum pobre — naquela ocasião, eu mesmo — se fazia presente para ouvi-lo.
— Ácido demais. Não torraram bem o café, deve estar ainda verde. Que desgraça para um grão tão rico, é um puro marroquino!
Espantei a borboleta das asas amarelas sulcadas por rajadas pretas e voltei meu olhar para Josefo. Este me encarava com uma torção de ondas violentas estampada no rosto, como se fosse culpa minha a má qualidade de seu café. Pouco me importando com suas reivindicações mequetrefes, apanhei meu lenço de bolso e, enxugando as gotas de suor em minha testa cada vez maior, disse-lhe:
— Vamos pagar a conta e seguir para a livraria, sim? Talvez lá encontres algo melhor que café ácido mal torrado.
Josefo amoleceu num instante sua máscara exótica de guerra e desfez-se em um sorriso de canto de boca, cinza de cigarro.
— A acidez da literatura me é mais detestável que a do café. Não suporto seu gosto, Torquato, é pior que as leituras dos tempos do Largo. Montesquieu tornou-se meu pior inimigo, e aqueles textos ingleses… céus!
— Não se preocupe, — Disse a ele, erguendo-me da cadeira — a livraria que iremos visitar, além de não ficar muito longe deste café, pode ser tomada como uma daquelas formidáveis cabanas tuaregues onde sempre um insigne patrono de caravana lhe recebe com hospitalidade. Não é como um lugar desses aqui, onde torram mal seu café. — E rindo lhe dei um tapa nas costas; estávamos já à beira do balcão — O dono é um desses velhacos que mais se parecem com um Jedidiah do que com um Dickens. Seu gosto por leitura é apócrifo, nada de chatices vetustas e volutações parabólico-sintáticas.
Josefo me olhou com frieza, e isto significava que havia aceito meu convite; era seu modo de dissimular a confiança absoluta que tinha em minhas aventuras. Como havia dito, não era um mau homem, talvez estúpido o suficiente para crer-se inteligente demais, ou requintado demais… tinha ares de dândi, mas da bíblia dos malditos conhecia somente o salmo 23. Era como um desses cristãos de porcelana, homens de barro frio que prestam homenagem ao santo sem olhar-lhe o rosto esculpido, não sabem o que estão fazendo, e pedem ninharias, exigem mesquinhezas com saibo de farinha de trigo no vapor, e crêem que a massa insossa de grãos moídas lhes irá nutrir o espírito como se fosse rara vianda.
Caso tempo tivesse de percorrer com minha tinteiro essas páginas de papel barato que comprei em um velho armazém na Penha, talvez expusesse de Josefo as cadeladas sarabandinas em que se metera por conta desse néscio traço de caráter, mas permito-me reservar alguns desses casos para outra oportunidade.
Por hora, basta saber que pagamos a magra conta e seguimos, de braços dados e em silêncio, para o Nephelibatorivm.
* * *
Quando a esquina da Rua Álvares Penteado dobramos, para acessar a Rua do Tesouro, ao longe avistei fechada a tímida porta da pequena livraria, onde podia-se ler, com alguma dificuldade, pintado à tinta de branco chumbo sobre uma placa de ipê inchada de umidade o nome Nephelibatorivm. Apontei com o dedo para que meu amigo pudesse ao menos de longe ver o estabelecimento, já que não fazia sentido gastarmos sola até lá sendo que estava fechado. Com algum desdém, Josefo respondeu-me o gesto:
— Com um nome desses, talvez tenha falido. — E deu meia volta, desvencilhando-se de meu braço.
Saibam também que Josefo detesta o Latim e toda sua numerosa prole. Meu colega era um germanista, da cepa que teria num camafeu o retrato de Wagner ao lado de Hoffmann, mas nunca um francês ou um espanhol. Nisto graça eu achava e muita, pois tinha em conta que talvez fosse meu colega o único advogado que havia fugido da total demência latinista da qual sofrem todos os homens das leis, com suas colunas acaneladas e suas estantes repletas de livros encadernados em couro tingido de vermelho turco, e cujos frontispícios tentam, com insucesso cômico, imitar os frontispícios do século dezoito.
Nunca compreendi essa admiração descomedida pela estética dos filhos do Lácio, mas a julgar pelo número enfastiante de leituras do gênero que tem um estudante de direito sobre as espáduas, bem… talvez esteja aí a resposta para a antipatia de meu amigo para com Cícero e os Graco.
Percebendo que não havia jeito para convencer Josefo a acompanhar-me para qualquer outra batida que fosse, decidi convidá-lo para uma bebida em meu apartamento, na Riachuelo, onde havia me instalado temporariamente para renovar os ares e, quem sabe, terminar a obra em que estivera trabalhando há algum tempo.
Josefo aceitou, isto enquanto caminhávamos rumo à sua casa, no final da Rodrigo Silva, próximo de meu lugar, mas havia uma condição para que ele ficasse por mais algumas horas em minha companhia: teria que lhe preparar umas doses da bebida que tanto amava, uma mistura hedionda de Romanée Conti, cravo e licor de anis.
Outro gosto que nunca compreendi, e que talvez fosse de sua altura de dândi poseur uma falha marca registrada que, mesmo crendo ele tratar-se de um brasão de requinte, não passava, — e isso é fato, pois provei dessa diarréia de cólera, — de uma descabida tentativa de notoriedade.
É preciso que diga que os bares, isto é, quando tinham de fato Romanée Conti em suas adegas, recusavam-se educadamente a poluir o vinho expendioso com licor barato e aromáticos fortes.
Pobre Josefo, o dândi mais estúpido de toda São Paulo!
* * *
Já em minha casa, grudamos junto ao bar:
— E como vai seu trabalho? Avanças em algo? Da última vez que conversamos sobre, estavas empacado como mula na serrania ainda no segundo ato…
A pergunta de Josefo referia-se à obra em que, à época, eu trabalhava exaustivamente, por vezes sem chegar a lugar algum. Trata-se de uma tragédia em cinco atos, e quem a 14 de outubro de 1922 saiu para divertir-se por algumas horas no Teatro São Pedro, sabe que estou falando de “O martírio de São Cipriano”.
— Não vai nada bem, isto é fato… estou mesmo empacado na cena quarta do segundo ato há semanas! — Isto tudo eu dizia enquanto ao bar preparava a hedionda bebida para meu amigo — Estou num impasse, destes grotescos, entende? Gostaria de acrescentar à arquitetura da obra certas colunas filosóficas, em parelha, é claro, com os rompantes de paganismo e diabolismo que tanto me agradam, e as poucas cenas cômicas que sucintamente se desenrolam em uma ou outra cena… Mas creio que recheei demais a peça com espíritos salamandrinos e aparições oraculares… Sabes, não sou amante da filosofia, e me debruçar sobre qualquer tomo de Empédocles ou Anaximandro, logo agora… ah! me custaria um diabo de tempo, e os santos, andam todos surdos! Creio que mudaram-se todos para o Rio.
Meu amigo franziu o cenho, desviou seu olhar para a bebida que eu preparava e, após lamber os beiços, disse a meia-voz:
— Sei do que precisas, mas tu não aceitarias o convite meu.
— E como tens tanta certeza disso? — perguntei-lhe, um tanto indignado.
— É que estás sempre metido com estes homens cabeçudos dos livros, esses espíritos mofados e enfadonhos que morreram há centúrias… preferes a velhice caduca que a juventude vigorosa… és um Diógenes. Digo, não tens luxo, nem prazeres… ora, e vais dizer que estou mentindo? Até os charutos que fumas tem cheiro insosso!
Pronta a bebida, entreguei-lhe o copo e encarei-o com alguma curiosidade em meus olhos. Josefo bebeu do copo com a voracidade de um minerador sedento. Ele depositou o copo em cima do balcão, estalou a língua, e olhou-me de soslaio. Esperei em silêncio por uma manifestação que não veio, então senti-me na obrigação de provocá-lo.
— E já que tens toda a desenvoltura de alguém que sabe como de fato divertir-se, o que acha que eu deveria fazer? Beber como um desgarrado como tu?
Josefo apertou os olhos, lambeu novamente os beiços e soltou uma risada breve, quase afogada.
— Te levo para um lugar, e se aceitares… bem… prometo-te que terás, pelo menos, algum descanso desses escritores teus que tanto perturbam a tua mente. E quem sabe não consegues encontrar caminho para tua peça?
Josefo não era homem convincente. Eu conhecia seus costumes e suas torpes incursões aos seus mundos de sombra nos mistérios da São Paulo. Talvez fosse o tédio, ou talvez a vontade agrilhoante de vê-lo tentar seduzir-me com seus encantos pútridos de louco charlatão; mas aceitei seu convite, e em alguns poucos minutos, estávamos os dois dentro de um auto, bebendo licor em um cantil de prata e rumando para a Marechal Deodoro.
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