Antologia 1: Búfalo

 Um dos maiores escritores da era dos blogs de ficção, Moacir Novaes marca seu retorno com Búfalo, uma coletânea de contos que evocam o candomblé e a cultura periférica.

Histórias fantásticas e assustadoras, apagadas e silenciadas estão escondidas em nosso cotidiano. Elas existem, invisíveis, em meio ao ruído constante da cidade de São Paulo.

Na história que dá nome à coletânea, numa noite de raios e trovões em São Paulo, você poderia sentir a eletricidade no ar… assim como o gosto ferroso de sangue. Em O médico preto, em meio ao caos de uma pandemia, um médico demonstra que para a vida prosseguir deve haver morte. A foto é a história de um fotógrafo que usa suas lentes para captar os últimos instantes de terror de suas vítimas. Em O caminho, o autor se vale da ficção para propor uma questão. E se as escolhas, o livre arbítrio e as decisões que tomamos forem apenas uma ilusão? O vigia nos revela que a pessoa nasce para o que ela é, e como certos hábitos são duros de abandonar…Mesmo depois da morte. E na última história, O machado e a tartaruga, uma exposição de arte africana demonstra como a religião do outro é sempre um “mito”.

Búfalo

Ela parecia tão sóbria… Talvez fosse apenas uma impressão superficial.

Parada em um dos cantos do salão, não estava sorrindo ou dançando.

As pulsações da música infiltravam-se em cada mínima fração daquele espaço.

Menos nela.

Nunca nela.

Era como se houvesse ali um vácuo. Ela parecia tão sóbria.

Não tinha os olhos confusos ou desesperados.

Não estava ansiosa para esquecer algo.

Ao contrário, parecia saber que quem busca vingança nunca pode esquecer.

Jamais deve perdoar ou fechar suas feridas.

Olhe e fique atento, tente ver, e vai notar que é como estar diante de um buraco negro.

Silencioso.

Impassível.

Ela estava parada, feito um fato inevitável.

Vestida de vermelho.

Cabelos de um tom ainda mais escuro que as roupas. Curtos. Uma figura esguia.

O inexplicável, em sua imagem, tornava-a imediatamente uma mulher bonita para qualquer olhar. Preste atenção no que digo, ela não era apenas bonita. Era uma mulher.

E existe uma força monstruosa nesse aspecto de sua personalidade.

Não uma moça inexperiente ou uma menina que precise de elogios.

Ela era uma mulher e isso fazia toda a diferença.

Sabia ser desejada, instantaneamente, como o demônio sabe ser rejeitado.

Estava entre dois espelhos, por isso você conseguiria ver a tatuagem em suas costas nuas, uma cabeça de um búfalo negro de longos chifres e olhos vazios.

Os traços do desenho eram absolutamente brutais, como cicatrizes, e ainda assim, lindos.

Ela mal percebia a música, dentro da sua cabeça havia espaço somente para as batidas dos tambores, enlouquecedoras, eternas. Elas eram o seu rosnado, ecoando em cada gesto e pensamento.

Moldando a vontade dela de gritar e destruir tudo ao ser redor.

Obrigando aquela mulher a conter-se. Negar-se.

Durante a última hora três homens e duas mulheres tentaram abordá-la e, em cada uma das tentativas, ocorria o mesmo processo, ela não sorria, olhava diretamente para a outra pessoa, como se desmontasse sua alma. O ato durava alguns segundos.

Depois parecia perder o interesse e simplesmente balançava a cabeça.

Negando-se.

Na sexta vez, um homem de cabelos claros se aproximou dela.

Ela o olhou, passando as camadas da alma até chegar ao centro.

Detestava homens violentos.

Odiava ainda mais quando percebia que um deles desculpava-se por todos os erros que tinha cometido em sua imprestável vida.

Os tambores estavam tão altos na cabeça dela.

Misturavam-se com a voz daquele polaco sorrindo e com a voz dos mortos. As batidas exigiam retribuição. Não apenas dor, mas punição.

“Meu nome é Iansã”

Essa foi a primeira vez que ela sorriu, em seguida, puxou o rapaz pela mão para beijá-lo. A boca dela tinha um gosto de canela ardida. Ela segurou um dos pulsos dele.

Ele a seguiu, sem questionar.

Juntos subiram pelas escadas de incêndio até o topo do prédio que hospedava o clube.

O céu estava escuro.

 Nuvens pesadas combinadas com as luzes da cidade. Você não veria os raios, mas, sentiria o cheiro da chuva e os trovões.

“Vamos fazer aqui?”

“Sim. Vamos sim querido.”

Ela se aproximou e segurou seu corpo. Depois o beijou e foi movendo as mãos até estar trançada a ele.

O prazer inicial rapidamente desapareceu quando o rapaz sentiu os ossos do seu braço e pulsos sendo pressionados até o ponto de trincarem sob a carne.

Não havia como afastar a boca do beijo dela, os lábios pareciam uma mistura de ferro e sangue seco. Não havia como gritar.

O gemido sufocado e repleto de dor súbita era incrivelmente doce para o paladar dela.

Os olhos escancarados, o medo por estar indefeso.

Tudo era doce e justo.

Sem aviso um raio atingiu o corpo daquela moça, transpassando-a, serpenteando entre os dois amantes. O trovão veio logo depois, como resultado do ar superaquecido, mas o som era pequeno, ao menos, se comparado com os tambores.

A corrente elétrica ainda estalava no ar quando o homem caiu fulminado no chão.

A mulher olhou para o corpo dele, para as queimaduras e ferimentos.

Ele ainda respirava.

Devagar e aflito.

Ela abaixou-se e colocou uma das mãos sobre o peito dele.

Encarava-o, esperando o coração parar de bater, inconscientemente, comparava aquelas batidas aos tambores na sua cabeça.

Queria guardar o momento.

Tum…. Tum… Tum… …. Tum… … … … e depois o nada.

Os tambores ainda estavam lá, dentro da cabeça dela, entre seus pensamos.

Já o coração dele não estava mais.

Ela se levantou, refez o caminho para dentro do prédio.

Os trovões faziam o ar em toda cidade vibrar, vidros tremiam e concreto reverberava com os estrondos.

Ainda assim, eram sons pequenos.

Ao menos se comparados aos tambores.